(Esta é uma obra mediunica; ainda não foi revisada em erros de gramatica ou ortografia; porem compartilho a sua essencia com muito amor no nobre obrar de Irmãos Espirituais)
GABRIEL
IV PARTE
Equipe Nosso Lar
medium maria
medium maria
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IV Parte No Hemisfério da Reflexão
Os dias de viagem foram longos e cansativos. Finalmente foram informados
que haviam entrado na propriedade de
Adredanha. Imensos campos adornados de lírios balançavam ao vento, o céu muito
azul e a claridade muito intensa. Gabriel ainda não visualizava colinas e nem
rios mas sentia um cheiro forte no ar que não conseguia decifrar.
Repentinamente surgiu-lhe no olhar, á direita da carroça, um rio como nunca vira.
Era uma imensidão azul e Gabriel estava perplexo com
a grandiosidade deste. Não conseguia ver a outra margem parecia-lhe infinito. O
forte cheiro lhe invadia o corpo. Extasiado estava com o que via...o vento
batia na imensa água levantando-a e jogando-a em enormes ondulações sobre uma
areia muito branca. Podia cerrar os olhos e sentir que aquele imenso rio
orvalhava seu rosto em pequenas goticulas que eram trazidas pelo vento forte.
Surpreendido constatou que a água que lhe chegava candidamente á face era
salgada. Deixou-se flutuar pela grandiosidade da beleza que se vislumbrava a
seus olhos, enquanto a carroça percorria veloz margeando a extensa praia. Do lado
esquerdo podia ver enormes plantações que mostravam que a terra era
demasiadamente fértil. Balbuciou emocionado, esquecendo-se que Job mal falara
consigo na viagem:
-
Como este imenso rio é lindo!
Job por um instante esqueceu-se que Gabriel lhe era
perigoso e cruel e explicou-lhe:
-
É o mar...o lindo mar de Adredanha!
Gabriel parecia um menino entusiasmado e
indagou-lhe.
-
É salgado ?
Job indiferente balbuciou:
-
É água que não se bebe!
Novamente os dois silenciaram na antipatia que os
distanciava. Gabriel vislumbrava a paisagem, desejando reparti-la interiormente
com Brigith. Pouco a pouco os viajantes foram se distanciando do mar .Gabriel
agora somente poderia ver vastas plantações verdejantes. Após rápido trajeto
viu um imenso portal e depois deste uma enorme moradia branca, com longas
colunas que davam-lhe imponência. Chegando defronte á mesma alguns servos se
aproximaram tentando auxiliar o lorde que já saia da carruagem. O lorde
dialogou rapidamente com um senhor bem escuro e que deveria ser o capataz
daquela propriedade. Este se aproximou da carroça falando.
-
Job, meu amigo! Quanto tempo distante desta propriedade. Deves estar
cansado. Apressa-te... estou
ciente que anseias ver tua família!
Job saltou da carroça e lhe fez um meneio
cumprimentando-o
-
Senhor Luís, senti saudades de tudo e de todos. Verei meus familiares e
posteriormente estarei pronto para a tarefa que me designar.
O capataz sorriu-lhe carinhosamente, e Job
afastou-se correndo rumo a uma vila de pequenas casinhas brancas que se espalhavam
por entre um imenso coqueiral.
O capataz Luís, olhou então Gabriel com seriedade e
lhe disse:
-
Quanto a ti rapaz, não te conheço. Disse-me o senhor Lorde que devo te
designar para o trabalho nas salinas. Como te chamas?
Gabriel saltou da carroça e colocou-se humildemente
em posição de servo esperando instruções.
-
Meu nome é Gabriel!
-
Muito bem Gabriel, acompanha-me.
Gabriel pegou os seus poucos pertences e caminhou
com o senhor Luís até uma das pequenas casinhas brancas. Disse-lhe:
-
Gabriel, aqui dormirás e te alimentarás. Dividirás esta casa com quatro
servos que ainda não retornaram das salinas. Não tardarão uma vez que o sol já
apeia. Repousarás um pouco e depois dar-te-ei novas instruções.
Gabriel fez um meneio de agradecimento e o capataz
se distanciou. Gabriel pode então analisar o pequena moradia que lhe era
destinada. Possuía dois compartimentos sem qualquer mobiliário. Podia perceber
três leitos improvisados, e com palha dos coqueiros. O outro compartimento um
cano de madeira jorrava água e um pequeno buraco mostrava onde eram feitas as
necessidades. Caminhou até uma pequena janela e desta avistou a imponente
moradia. Poderia imaginar-lhe o a fartura , o luxo e as riquezas. O andar
superior desta, possuía enormes varandas ornadas de lírios brancos. Sentia-se
incompreensivelmente injustiça com sua situação. Deitou-se no solo e em seu
cansaço dormiu.
-
Acorda rapaz!
Gabriel de um sobressalto ergueu-se. Imediatamente
percebeu que anoitecera. Alguém portava uma tocha defronte a si, mas não
conseguia ver-lhe claramente o rosto.
-
Meu nome é Fernando, como te chamas?
Gabriel conseguia agora ver-lhe o semblante que
brilhava sob o calor da chama. Era bem jovem ainda, talvez tivesse seus
quatorze ou quinze anos. Mas era extremamente forte e muito robusto. A cor também
lhe chamava a atenção porque a pele parecia colorida de negro pelo sol, ainda
que não lhe fosse a cor de origem.
-
Me chamo Gabriel. Dormi demais!
-
Sim por certo que dormistes...todos já pegaram a refeição; deverás
pegar a tua!
Gabriel acompanhou-o até os fundos da enorme moradia
de Lorde Orlando. Lá, de uma imensa copa, eram-lhes fornecidos pratos
fumegantes. Fernando falou-lhe:
-
Sempre será assim, deverás trazer teu prato e aqui pegarás o alimento.
As refeições devemos fazer na casa que temos.
Gabriel caminhou segurando o seu prato de caldo
grosso e sentou-se defronte á pequena casinha. Olhou Fernando agradecendo-lhe:
-
Obrigado por me acordares; onde estão os outros?
Fernando sentou-se ao seu lado dizendo-lhe:
-
Nossos companheiros logo chegarão, tiveram permissão a sair na noite!
-
Fala-me de Luís!
-
Não deves tratar o capataz assim! O senhor Luís não gosta de
intimidades!
-
Mas Fernando, ele me pareceu amigo e terno.
-
Não compreendes ainda, Gabriel. Por vezes assim o é mas constantemente
é cruel e rigoroso.
-
Fernando o que são salinas?
Fernando intrigou-se com o desconhecimento de
Gabriel e respondeu-lhe:
-
Salinas é onde se faz o sal. Com este o senhor lorde negocia e
administra suas propriedades.
-
Não compreendo Fernando, mas como se faz o sal?
Fernando, enquanto Gabriel se alimentava ia lhe
explicando a tarefa á qual estava predestinado.
-
A água do mar é transportada em enormes toneis de madeira que são
colocados em carroças para depois ser vertida em extensas valas no solo. Pouco
a pouco a água vai sumindo no ar, e fica em seu lugar um pó esbranquiçado que é
recolhido. Tudo sempre sob os olhares dos servos que nos são superiores.
Gabriel indagou-lhe ingenuamente.
-
Não parece ser muito trabalhoso!
Fernando olhou-o, encolhendo os ombros.
-
Lorde Orlando é muito bom para com todos nós; estamos entregues á
servidão e cabe-nos servir!
A esperteza de Fernando, impressionava Gabriel, e
este continuou.
-
Pelo que percebo, não estás acostumado á lida grosseira. Digo-te que
sofrerás! O sol te queimará a pele abrindo-te feridas, até que a cor negra se
incorpore á tua pele tão branca e macia. A água salgada do mar come-nos a pele
durante o dia inteiro de trabalho, destruindo cada maciez até que esta fique
áspera e grossa e não mais sinta a agressão. Quando recolhemos o sal o ar se torna insuportável e os olhos ardem
queimando-se constantemente; te acostumarás, todos passamos por isto e
sobrevivemos!
-
E se eu não quiser isto, Fernando!
Fernando olhou-o incrédulo no que ouvia; não
compreendia de onde tinha vindo Gabriel que não aceitava a servidão.
Levantou-se dizendo-lhe:
-
Não compreendo o que dizes Gabriel, mas vejo que viestes de problemas e
desejas atrair a ti mais alguns. Ficarei longe de ti, nunca fui castigado e não
desejo me meter em confusões.
-
Espera Fernando, responde-me somente isto, o que acontecerá se eu me
recusar a passar por tudo isto!
Fernando voltou-se contrariado dizendo-lhe enquanto
se afastava:
-
Sem trabalho, sem alimento...sem trabalho, castigo!
Gabriel ficou sozinho, pensando em tudo que Fernando
lhe dissera e que lhe aumentava a revolta.
Já era demasiadamente tarde, quando o lorde Orlando
chamou o capataz Luiz para prescrever suas ordens. Encontrava-se recostado em
uma poltrona com ar extremamente cansado. Luís entrou pedindo-lhe licença e o
lorde falou-lhe.
-
Conhecestes Gabriel?
-
Pouco senhor Lorde, levei-o para
uma das casas dos servos e deixei-o repousar da viagem. Amanhã cedo começará
nas salinas como o senhor ordenou.
-
Perceberás Luís, que não está acostumado a lida árdua...tinha boa vida
tratando de cavalos!
Lorde Orlando tentou conter-se para não demostrar
raiva em suas palavras e continuou.
-
Retornarei ao castelo, pela manhã. Somente aqui vim para trazer
pessoalmente este servo, que me trouxe inúmeros problemas...
O lorde Orlando deu um suspiro profundo e reprimindo
a tristeza que lhe invadia os sentimentos continuou:
-
Quero que lhe dês trabalho árduo e incessante. Como percebestes, sua pele é macia e clara; provavelmente adoecerá! Não te
compadeças Luís. Ordeno-te que não
tenhas piedade pois este servo não a merece. Se te criar maiores problemas
prende-o na masmorra próximo ao rio.
Luís estava perplexo com o brilho febril que
faiscava nos olhos do nobre. Não compreendia no entanto os motivos que o
levavam a tanta contrariedade. Ainda que o lorde Orlando tentasse disfarçar a
sua fúria, Luís imediatamente o havia percebido nas palavras que saiam
amarguradas ; nunca o vira com tanta ira de um servo.
" Que teria feito ao lorde, aquele jovem servo
Gabriel?" perguntava-se.
-
Somente isto senhor lorde?
-
Não Luís. Desejo que o servo Job, sua esposa e filha sejam trazidos
para a lida aqui na moradia. Não permitas jamais que Gabriel ouse se aproximar
deles. Deverás protege-los!
Inexplicavelmente Luís começava a sentir enorme
repulsa de Gabriel. Lorde Orlando era um nobre bom e justo para com os servos.
Ainda que lhes tratasse como seres inferiores, respeitava-lhes a necessidade de
repouso , moradia e alimento e não aplicava castigos por mero prazer como
faziam outros nobres. No entanto o nobre parecia desejar castigar aquele servo.
-
Senhor lorde, farei tudo como deseja e quando o senhor aqui retornar
perceberá que este servo não lhe trará mais problemas. Aprenderá a ser um bom
trabalhador humilde e resignado. Com a sua licença irei pedir providencias para
sua viagem pela manhã.
Dizendo isto, Luís saiu apressado deixando o lorde
sozinho com seus inúmeros pensamentos de dor e revolta.
Uma bela manhã surgiu imponente e majestosa, e o
lorde Orlando já se afastava da moradia, em viagem com seus guerreiros .
Luís procurou Job ,sentindo-se satisfeito com a
ordem de leva-lo para a moradia com a sua família; sempre gostara daquele servo
humilde , inteligente e prestativo. O servo Job no entanto, estava imensamente
intrigado com as atenções e cuidados que o capataz lhe dispensava.
-
Porque me tratas tão bem Luís? Porque pedes-me que nunca saia da
moradia sem comunicar-te?
-
Ordens de nosso senhor, lorde Orlando. Devo proteger-te Job e também
tua família.
-
Proteger-me de que senhor?
Luís olhou-o fixamente dizendo-lhe:
-
De Gabriel Job! Sei que deves saber porque; mas se o lorde não me
contou os motivos, também não pedirei que me contes.
Luís afastou-se deixando-o no salão imponente da
moradia . O capataz começou a soar uma catraca, próximo á vila dos servos e
estes surgiam ágeis de suas pequenas casas. Pegavam na copa da moradia um
caneco de leite e um pedaço de pão e após alimentarem-se reuniam-se defronte a
Luís para que este os dispensasse para rumarem para as tarefas que lhes eram
incumbidas. Uns iam para o cultivo nos campos; outros para o trato com os
animais; e um grupo de homens robustos e
de pele escurecida ia para as salinas.
Gabriel estava entre eles, mais ou menos trinta
servos, a sua pele alva destoava em meio a seus companheiros. Luís chamou-o
fazendo-lhe um sinal:
-
Aonde pensas que vais trajado assim ?
Gabriel olhou-se na túnica longa e branca, que
sempre usara.
-
Tragam-lhe uma canga!
Ordenou Luís com voz séria e rude. Gabriel recebeu a
canga de um dos servos e rapidamente a colocou, deixando a túnica próxima aonde
dormira na casa. Logo retornara para junto dos seus companheiros que também se
trajavam somente com uma canga e todos caminhavam rumo ás salinas. Gabriel
avistou o esplendoroso mar de Adredanha, mas agora ele não lhe parecia tão
belo; sentia-o assustador depois das advertências de Fernando. Sentia enorme
angustia pelo que dissera que iria sofrer naquela lida.
Grupos de cinco servos ,para cada tonel de
madeira, deveriam leva-lo ao mar e deveria ser enchido com aquela água
salgada. Por vezes as fortes ondas os jogariam á areia, mas rapidamente
deveriam retornar e recomeçar a difícil tarefa de encher o tonel. Assim que
estivesse cheio, os cinco servos precisavam
arrasta-lo na areia; coloca-lo na carroça e leva-lo ás valas para ali
verter a água.
Gabriel escutou as orientações silencioso,
eventualmente havia entrado no lago da propriedade do castelo de lorde Orlando,
para banhar-se e lhe era imensamente prazeroso .
Todavia agora
ele era obrigado a entrar naquela água fria e extremamente revoltosa e isto o assustava porque não sabia nadar.
Inúmeras vezes era arremessado na areia muito branca
mas o capataz impiedoso mandava-o voltar e auxiliar os outros a segurar o
tonel.
Gabriel sentindo-se exausto auxiliou finalmente
tirava o tonel do mar com seus companheiros. Os outros cinco toneis também já
haviam sido retirados do mar repletos de água salgada e agora precisavam
arrasta-los na areia até á carroça.
O tonel parecia ser tragado em seu peso na areia
muito fina. Afundava-se sendo mais
difícil transporta-lo. Estavam todos cientes que se o tonel se virasse vertendo
a água, teriam que reiniciar a árdua tarefa.
A pele clara de Gabriel começava a se avermelhar, e
o sal da água secando em seu corpo lhe trazia imensa ardor. O imenso incomodo
que sentia era pior que a descrição que Fernando lhe fizera.
Imenso era o
trabalho de colocar e tirar os toneis cheios e pesados das carroças, mas
finalmente o haviam conseguido e agora vertiam a água nas valas.
Novamente o trabalho recomeçava retornando os servos
e os respectivos toneis ao mar. Assim transcorria o dia para os servos das
salinas. Quando o sol já alto ia; uma catraca se fez soar; os toneis eram então
deixados e todos paravam para se alimentar.
Gabriel ambicionava uma sombra, mas o forte sol
queimava em todas as direções. Sentou-se próximo a uma das carroças,
desejando-lhe a pouca sombra. Alimentou-se ainda que não sentisse vontade de
faze-lo. Tateou os braços extremamente avermelhados; a pele estava
demasiadamente quente e sentia enorme ardor em sua face e tronco. Sentia-se
asfixiado com o ar quente ainda que brisas soprassem freqüentemente.
Gabriel recordou-se saudoso dos campos frescos do
castelo. Lembrou-se do rio cristalino, das arvores, das colinas, do lago; olhou
ao redor e avistou as valas ás quais chamavam de salinas. Poderia conta-las em cinqüenta. Em
algumas já poderia ver o pó esbranquiçado secando ao sol. Em outras o liquido
ainda era abundante. Defronte a si o imenso mar de Adredanha lhe instigava
receios. Uma imensidão azul que lhe mostrava superioridade. Novamente a catraca
soou. tirando-lhe do breve repouso. Caminhou junto com os seus companheiros
para verter o liquido existente no tonel, na vala. pela terceira vez
recomeçariam a penosa tarefa.
Gabriel caminhou angustiado acompanhando a carroça
que rangia leveza. O seu corpo reclamava sentindo-se pesado e febril. A areia
fina da praia feria-lhe os pés que haviam se cortado na longa tarefa da manhã.
Desejava imensamente poder correr e refugiar-se em algum lugar fresco para amenizar um pouco as dores que sentia
mas o capataz Luís, o olhava vigiando-o continuamente no trabalho. Como poderia
fugir, se não conhecia os limites e nem as distancias daquela propriedade. No
trajeto que fizera não identificara as ervas que tão bem conhecia e dominava nas colinas e nos pastos
do castelo; a vegetação ali lhe era imensamente diferente. Novamente levavam o tonel ao grande mar.
Sentiu na água fria, um alivio
momentâneo ao ardor que sentia no corpo
mas o conforto foi drasticamente interrompido porque na agitação das ondas pouco conseguia se equilibrar
e era arremessado na areia sem piedade. A água
ficava-lhe na altura da cintura, mas regularmente, na elevação das
ondas, chegava-lhe ao pescoço trazendo-lhe pânico.
O sol misericordiosamente já declinava sua
majestade, quando retornavam ao oceano repetindo a dolorosa tarefa pela quarta
vez. Gabriel não mais possuía forças para executar o trabalho exaustivo. A sua
visão se turvou, as pernas ficaram-lhe tremulas, numa das ondulações não mais
conseguiu se equilibrar e foi arremessado impiedosamente á areia, ficando
imóvel. Luís com sua voz austera
prontamente ordenou que se erguesse e auxiliasse os seus companheiros, a
sustentar o tonel. Não houve qualquer resposta ou reação por parte de Gabriel.
Estava de bruços e inconsciente. A água cobria-lhe o corpo a cada ondulação, o
que o asfixiava fazendo-o engolir água. O capataz percebendo que não obedecia
suas ordens, fez um sinal para que Fernando fosse até ele e o puxasse para a
areia ficando a salvo das ondas que se arremessavam sobre seu corpo. Gabriel
estava agora de bruços sobre sobre a areia fina
demasiadamente quente. Despertou abruptamente com o estalar do chicote
em suas costas. Respirou ofegante expelindo a água salgada que havia engolido.
A areia fina, ao ser arrastado, havia se aglomerado em seu rosto e corpo. Olhou
o capataz Luís que agitava o chicote impaciente e balbuciou enfraquecido:
-
Clemência senhor!
Luís observou- fria e indiferentemente.
-
Levanta-te servo!
Gabriel reunindo as forças que ainda possuía,
ergueu-se com grandiosa dificuldade, e caminhou cambaleante retornando ao trabalho . As pernas
fraquejavam fazendo-o cair
continuamente. Após a água ser vertida finalmente na vala, soou a catraca e
sentindo um alivio inexplicável Gabriel
arrastou o seu corpo até á moradia. Num pequeno córrego se banharam e na copa
recolheram o caldo reconfortante.
A noite já estava escura quando finalmente Gabriel
chegou á pequena casinha e deixou-se cair de bruços. O corpo lhe doía
imensamente; um imenso calor parecia queima-lo em cada pedaço de sua pele.
Sentia-se extremamente febril em arrepios de imenso frio que lhe percorriam
o ser. Os profundos vergões que o
chicote delineara em suas costas eram-lhe três sulcos de imensa dor.
Os seus companheiros dormiam serenos porem Gabriel
sentia-se desfalecer em interminável sofrimento. Fernando não conseguira dormir
escutando-lhe os gemidos doloridos. Levantou-se inquieto e olhou-o com extrema
clemência . Temia aquele jovem Gabriel,
que se mostrara atrevido e arrogante , desejaria ficar longe dele para não atrair
problemas para si; no entanto aquele
irmão sofria e sentia enorme necessidade de auxilia-lo; "como poderia
repousar tranqüilamente se aquele irmão precisava de auxilio"... um imenso sentimento fraterno e
solidário o invadia.
- Gabriel, trarei água! Vou banhar-te continuamente,
isto irá aliviar-te! Precisas beber muito liquido também!
Gabriel entreabriu os olhos, não possuindo forças
para agradecer-lhe. Fernando pegou água e o banhou continuamente aquela longa
noite. Com extremo amor abdicara da
sua necessidade de repouso para auxiliar
aquele seu companheiro que sofria; sem
nada impor ou questionar;
A catraca soou pela manhã . Fernando já se afastara
de Gabriel, após ficar toda a noite em vigília. Banhara-se
para espantar o sono que sentia e agora levava-lhe a refeição matinal. Gabriel
ergueu-se com extrema dificuldade para alimentar-se e Fernando afastou-se
temendo censuras do capataz. Após alimentar-se levantou-se e saiu cambaleante
da casinha para se reunir aos seus companheiros.
Os servos o olharam-no com assombro e Gabriel
olhou-se também perplexo. A pele
extremamente queimada e vermelha se avolumava em bolhas que se dispersavam em
todo o seu corpo. Sentiu que os vergões do chicote em suas costas infeccionara.
Os seus pés e a sua face estavam inchados, assim como seus olhos que pouco
conseguia abrir, com certeza, em conseqüência da febre, do sal da água, e da
forte luz solar. Percebera ao se alimentar que também seus lábios estavam
rachados e que até o movimento de mastigação lhe era doloroso.
Olhou o capataz Luís humildemente. Ansiava
desesperado, que este tivesse clemência, percebendo-o em estado físico tão
lastimável, e o dispensasse do trabalho nas salinas até sua recuperação.
Não conseguiria suportar mais um dia no trabalho nas
salinas... o capataz Luís, no entanto, ignorou-o .
Caminhando mecanicamente, com extremo sacrifício a
cada passo, os dias se repetiram sem clemência para Gabriel.
Passara-se o período de um ano de muita dor e
sofrimento para Gabriel.
A sua pele tornou-se gradativamente escura e mais
resistente. As feridas cicatrizaram paulatinamente. Os pés sofreram uma
metamorfose tornando-se duros e insensíveis. Os músculos se salientaram em todo
o seu corpo.
Gabriel começava a ter tempo para pensar. A vida
naquela propriedade de Adredanha, lhe fora um verdadeiro inferno. Estava ciente
de que o capataz Luís antipatizava com ele; castigava-o continuamente quando
não conseguia concluir um bom desempenho em seu trabalho nas salinas. Era
impiedoso e cruel.
Os seus companheiros inexplicavelmente temiam
aproximação ou dialogo consigo. Mantinham-se silenciosos e indiferentes á sua
presença. Fernando o auxiliara continuamente, em muitas e muitas noites, de
tortura; até que se recuperasse e
tivesse forças a cuidar sozinho de seus ferimentos; mas este também lhe impunha distancia com um silencio
inviolável.
Gabriel intrigava-se. Nunca mais vira ou tivera
noticias do servo Job, por vezes concluindo que deveria ter retornado para o
castelo com o lorde. Tal conclusão lhe aflorava intima revolta achando-se
cruelmente injustiçado.
O corpo se adaptara definitivamente á sua árdua vida
em Adredanha e ao seu trabalho nas salinas. Terminara-lhe o tempo de dor e
sofrimento.
O sol já alto se erguia no céu incrivelmente azul. O verde das colinas e
a brisa fresca se misturavam num aroma de flores silvestres. O castelo
imponente reinava em mais um dia tranqüilo.
Philip encontrou o médico, Ricardo medicando com
extrema dedicação, um servo que se ferira no cultivo nos campos. Falou-lhe com
admiração:
-
Senhor Ricardo, o lorde mandou-me chama-lo!
Ricardo olhou-o sentindo-se intrigado. Desde que o
lorde retornara á propriedade nunca mais o procurara. Por vezes, quando se
encontravam ocasionalmente, cumprimentava-o num rápido e frio movimento manual.
Nada sabia sobre a viagem ä propriedade de Adredanha , sentindo-se extremamente
preocupado com os destinos de Job e Gabriel. A vida naquela propriedade voltara
a uma rotina tranqüila e sem novidades. A tristeza do lorde Orlando se mantivera
aparentemente profunda, enquanto que o seu filho, o jovem Arthur, parecia haver
superado sua dor expandindo jovialidade e alegria no castelo.
Ricardo disse a Philip que iria prontamente procurar
o lorde na biblioteca e o capataz afastou-se. O medico pensativo terminou de
colocar a atadura no braço do servo e sorrindo-lhe carinhosamente ,despediu-se
saindo do pavilhão dos servos e caminhando até o salão principal do castelo e
de lá para a biblioteca. A porta estava entreaberta.
-
Senhor lorde Orlando, deseja falar comigo?
O lorde autorizando que entrasse, olhou-o com
seriedade.
-
Sim Ricardo. Tenho uma tarefa para dar-te!
Ricardo ouviu-o atento e prestativo.
-
Desejo que viajes para a propriedade de Adredanha, e me tragas
noticias.
O medico inquietou-se questionando.
-
Senhor Lorde, perdoai-me a ousadia, mas sou necessário neste castelo.
Tem vinte servos que precisam de meus cuidados.
O lorde interrompeu-o sentindo-se contrariado.
- Deixai de tolices Ricardo. Preciso que viajes e
tragas noticias do servo Gabriel!
A ordem do lorde era-lhe inesperada atingindo-o
incompreensivelmente. Novamente era enredado pelo destino, na vida de Gabriel e
de seus crimes. Por vezes sem saber o que ocorrera , achava que o lorde
houvesse o matado para honrar a vida de
seus familiares; por outras vezes
julgava que este o houvesse enclausurado numa masmorra distante;
Entretanto se surpreendera quando o lorde lhe falou que Gabriel estava na propriedade de Adredanha. O Lorde Orlando
percebeu-lhe o semblante pálido e falou-lhe compreensivo:
-
Julgo-te pessoa ponderada e de inteira confiança. Muito refleti aquela
noite em que tudo me contastes! Conclui que mata-lo seria pouco! Prende-lo
seria lhe cômodo! Resolvi conceder-lhe a oportunidade de reconhecer e
arrepender-se dos seus erros e de poder
se redimir do imenso mal que fez. Julguei-o ao trabalho! Em diária vida penosa,
teria oportunidade e tempo á reflexão e aprenderia com este a ter disciplina, equilíbrio, humildade e resignação. No
entanto sinto enorme necessidade de tomar conhecimento se no árduo trabalho
regenerou-se, e por isto te peço que vás a Adredanha!
O lorde deu silenciosa pausa para observar as
reações de Ricardo e prosseguiu:
-
Da propriedade de Adredanha, não deverás retornar sem antes haveres
concluído o que Gabriel aprendeu com sua nova vida!
Ricardo remuia as palavras do lorde dentro de si,
sem compreende-las corretamente, O lorde ordenou-lhe excluindo-lhe qualquer
possibilidade de recusa.
- Viajarás pela manhã, Ricardo!
O medico afastou-se despedindo-se do lorde com uma
humilde reverencia e caminhou apressado rumo ao rio veloz para refletir
pausadamente em tudo.
Não conseguia compreender porque o Lorde tivera
tanta clemência com o assassino de sua família, doando-lhe oportunidade a
melhorar-se. Era-lhe incompreensível pelo muito que conhecia aquele lorde frio
e indiferente ás aflições e sofrimentos de seus servos. Tratando-os no
essencial á mera subexistencia como fazia com qualquer um de seus animais.
Achando-os inferiores.
Gabriel
recostara-se para fazer a breve refeição no meio de um dia de trabalho. O seu
corpo não mais ansiava o frescor de uma sombra. Sentava-se em pleno sol
desafiando o calor que tanto o ferira, mas não mais o incomodava. Olhava também
o imenso oceano em desafio e orgulhava-se de ter aprendido a domina-lo, com
perfeito equilíbrio. Por vezes a água
lhe subia acima do rosto e conseguia perfeitamente manter-se sobre ela;
aprendera a nadar forçosamente. Um ano e meio se passara sendo desafiado por
sua hostilidade mas agora desafiava sua grandiosidade. Sentia-se forte e
robusto e os demais servos observavam-lhe com seriedade e respeito longínquo.
Não fizera amigos mas não sentia falta destes. Se empenhava em suas horas de
repouso em conhecer melhor os limites da
vila dos servos. Enquanto os seus companheiros de lida se divertiam, em danças
ocasionais , em longas conversas, ou com suas mulheres; Gabriel dava longos
passeios noturnos descobrindo caminhos ocultos na vegetação. Num desses
passeios descobrira um rio que desaguava no mar. Havia pensado em fugir subindo
este; teria água farta a beber e com certeza frutas silvestres a comer na longa
fuga; no entanto optou em melhor fortalecer-se. O objetivo não lhe era fugir
das propriedades de lorde Orlando; desejava sim, ardentemente, retornar ao castelo.
Gabriel terminou a refeição com brevidade e enquanto
os demais servos aproveitavam os poucos minutos que ainda tinham para repousar;
ele ergueu-se e caminhou na areia. Sentou-se na areia fina que inúmeras vezes
tinha lhe cortado os pés e pegando um pouco desta em sua mão a apertou
violentamente exclamando em pensamento hostil "és me submissa
agora!"...A catraca soou e todos os servos retornaram ao trabalho.
Gabriel se esforçava para ser o melhor e o mais
forte; não para atrair a si os encantos do capataz Luís, e nem para fugir-lhe
aos castigos; mas para salientar em toda a sua musculatura o imenso ódio que
sentia de tudo e de todos .
"Voltaria..."A afirmação era continua e
determinada em sua mente ao longo do dia, e quando isto acontecesse voltaria um
homem forte e valente; voltaria um guerreiro.
Sabendo ler e escrever, atributos que o velho Manco
lhe dera em árdua doutrina, também se treinava mentalmente ao longo do dia,
formulando letras, palavras e estórias em sua memória. Tinha conhecimento que a
grande maioria daqueles servos eram ignorantes e não letrados, e isto fazia com
que se sentisse superior a todos eles. Inúmeras vezes punha-se a contar os
passos que dava, para não esquecer as difíceis e complicadas lições de
aritmética. "Voltaria um guerreiro!"
O dia findara e a catraca soou para que retornassem
á moradia.
Luís observava Gabriel atentamente preocupado.
Assombrava-se com a rápida adaptação deste á vida nas salinas. Admirava-lhe o
corpo atlético completamente recomposto do sofrimento. Temia-lhe a fisionomia
freqüentemente revoltada, mas não poderia lhe impor castigos por seus
pensamentos que desconhecia mas poderia afirmar não serem bons. Era um servo
exemplar e tinha força a trabalhar por três. Possuía o porte, a elegância e a
postura de um lorde e isto o impressionava. Andava com altivez e olhava os demais companheiros de lida com
superioridade aparente.
O capataz Luís sentia que os problemas não haviam
terminado para o lorde Orlando mas pareciam estar apenas começando. O belo
jovem que ali chegara com um jeito extremamente frágil e um corpo juvenil, com
o árduo trabalho das salinas e consequentemente com o imenso sofrimento que lhe
fora imposto, se transformara num homem forte, que em seu semblante
resplandecia contrariedade e certamente não tardaria a desafia-lo.
Luís sentia
enorme receio e estava decidido a mandar um mensageiro ao castelo, afim
de alertar o Lorde Orlando sobre suas desconfianças.
Quando se aproximavam da moradia avistou prontamente
o viajante que chegara á propriedade. Gabriel avistou-o também reconhecendo-o ;
Luís caminhou até Ricardo, esquecendo-se momentaneamente que os servos lhe
aguardavam a ordem para que podessem ir se banhar e alimentar.
-
Que bom ver-te Senhor Ricardo...a que vens?
Ricardo apeou da montaria olhando os servos, mas sem
reconhecer Gabriel. Voltou-se para Luís dizendo-lhe:
-
O Lorde Orlando mandou-me para analisar as condições físicas de seus
servos nesta propriedade. Ficarei apenas alguns dias!
-
O acomodarei imediatamente senhor Ricardo, tão logo dispense os servos.
Luís voltou-se e soando a catraca os servos se
dispersaram. Então acompanhou o medico que parecia extremamente fatigado até o
interior da imponente moradia. Tão logo ali entrou, avistou Job que polia com dedicação, as imensas peças
de madeira que adornavam a escadaria. Exclamou com alegria:
-
Job, meu amigo!
O capataz Luís sentiu-se extremamente intrigado com
a intimidade do medico para com aquele servo, e resolveu deixa-los a sós,
ordenando:
-
Job, encaminha o senhor Ricardo ao aposento.
Quando Luís se distanciou saindo da moradia, o
médico radiante deu um forte abraço em Job. Viajara angustiado desejando saber como
encontraria aquele servo tão amigo. Job também imensamente feliz em vê-lo,
levou-o até o aposento e lá o medico pediu-lhe que se sentasse para poderem
conversar um pouco. O servo prontamente atendeu-lhe o pedido e sentou-se com a
costumeira humildade. Ricardo contou-lhe as ordens que recebera do lorde, e Job
prontificou-se a informar-lhe:
-
Por vezes o vejo Senhor Ricardo! Este ano e meio me ocultei nesta
moradia mas freqüentemente o observo quando sai para a lida nas salinas e
quando retorna.
-
Gabriel está na lida das salinas?
-
Sim senhor, nosso bom lorde desejou castigá-lo impondo-lhe sofrimento
em trabalho árduo; por longo tempo o sofrimento lhe era aparente no corpo
frágil, no entanto...
-
Fala-me Job, conta-me tudo o que sabes! Não me omitas nada!
-
Senhor Ricardo, infelizmente não adiantará falar-lhe! O senhor
precisará o ver e compreenderá. Pela manhã poderás ve-lo+ quando sai para as
salinas.
Job desculpou-se e saiu a concluir suas tarefas.
Gabriel vagava pensativo na vila dos servos.
Sentia-se saudoso do castelo e agora a presença do médico Ricardo avivara-lhe
as lembranças. Sentia-se curioso a respeito de sua presença ali na propriedade.
"Porque teria vindo?" Gabriel encostou-se em palmeira frondosa e
olhou o céu negro; negra lhe era a vida sem o sorriso encantador de Brigith.
Nunca a esquecera nos longos dias das salinas. Fitou a noite extremamente
estrelada mas não conseguia imagina-la uma estrela. A doutrina cristã que o velho Manco lhe ensinara, sumira tal
qual a fé que não mais sentia.
Voltou ao seu pequeno leito, feito com folhas
ressecadas de palmeira, para tentar dormir. Mas as lembranças de dias outrora
tão felizes em sua juventude livre e farta em emoções, deixavam-no angustiado,
sendo ardilosamente substituídas por inúmeros ressentimentos e magoas de sua
vida sofrida e solitária.
Na bonita manhã Gabriel colocou-se próximo aos
demais servos para recomeçar o trabalho. A rotina lhes era a constante mestre e
companheira sempre assídua. os hábitos eram repetidos continuamente tornando-se
mecânicos. Nada se alterava na propriedade de Adredanha, nem mesmo o clima sempre
árido , seco e quente. Mas naquela bela manhã, Luís soava a catraca ao lado do
médico Ricardo, com certeza teriam novidades. A multidão de servos silenciou e
Luís falou-lhes.
-
O médico Ricardo está na propriedade, obedecendo ordens de nosso senhor
Lorde Orlando, para verificar-vos a aptidão física. Se algum de vós se sente
mal, deverá me procurar, para que eu encaminhe a seus cuidados.
Luís olhou o medico, indagando-lhe se desejava mais
alguma coisa. Ricardo fez-lhe um gesto negativo e o capataz dispensou os servos
do cultivo e os servos do trato com os animais, ficando ali somente os servos
das salinas.
-
Senhor Ricardo, devo seguir agora para as salinas...deseja
acompanhar-nos?
Ricardo olhava os cinqüenta servos sem conseguir
identificar entre eles o servo Gabriel . Falou:
-
Desejo lhe pedir algo Luís!
-
O que desejar senhor Ricardo!
-
Peça que os servos se apresentem um a um, para que possa verificar-lhes
a forma física. Depois faremos o mesmo com os demais que já se foram para a
lida.
Luís atendeu prontamente o seu pedido, ordenando:
-
Que se apresente um a um de vós ao médico Ricardo. Deverá dizer-lhe o
nome e depois prosseguir para a lida nas salinas.
Em impressionante disciplina metódica, os servos
foram se apresentando e Ricardo analisava-lhes o corpo e suas eventuais
feridas.
-
Meu nome é Gabriel, senhor!
A voz saiu firme, forte e hostil. Ricardo olhou-o
tentando mostrar-se indiferente, no entanto estava imensamente surpreso e agora
compreendia porque o amigo Job lhe
dissera que precisaria vê-lo. Gabriel estava irreconhecível! Lembrou-se
rapidamente do jovem que medicara por duas vezes com as longas crises febris;
tão convulsivas. Era um jovem frágil, de pele extremamente fina e branca e de
olhar ingênuo. Agora diante de si, estava um homem incrivelmente musculoso, com
formas definidas e olhar assustador. Ricardo dispensou-o temendo demorar-se em
sua analise e este imediatamente rumou a caminho das colinas. Quando o medico
terminou a tarefa de exame superficial daqueles servos, agradeceu ao capataz e
foi para a moradia. Ricardo sentou-se pensativo em seu aposento. Pegou um
pergaminho e mergulhando a pena na tinta escura
escreveu:
"Senhor Lorde
Orlando
Revi o servo com assombro! Os castigos impostos
transformaram-no num guerreiro forte .
Temo pela segurança de sua propriedade.
O porte físico é a de um nobre;
a força aparente é a de seu mais forte servo;
e o olhar do mais vil dos animais.
Preocupado aguardo
ordens.
Seu fiel servo
Ricardo"
Ricardo acabara de lacrar o pergaminho, quando Job
bateu na porta pedindo-lhe licença para entrar. O médico prontamente abriu a
porta.
-
Bom dia senhor Ricardo! Não deseja fazer a sua refeição matinal?
-
Senta-te Job, posteriormente irei alimentar-me! Porque ficastes nas
tarefas da moradia?
-
Senhor Ricardo, o lorde deixou
instruções com o capataz Luís, para que me protegesse e protegesse minha
família.
-
Sabe Luís dos acontecimentos no castelo?
-
Não senhor Ricardo, mas o Lorde o deixou ciente que deveria nos
proteger de Gabriel.
-
Job, não te fez perguntas o capataz?
-
O senhor Luís é um bom homem; é discreto e de inteira confiança do
Lorde Orlando.
-
O que achas que o Lorde lhe falou de Gabriel?
-
Contou-me certa vez, quando pedi clemência para Gabriel, em função de
seu estado doentio; que tinha ordens para não apiedar-se dele, impor-lhe
trabalho e disciplina, independente de seu sofrimento...
-
Ficou doente e tivestes piedade? Pedistes clemência Job?
-
Sim senhor Ricardo...durante longos meses foi arrastado ao trabalho nas
salinas com imensas queimaduras e feridas em seu corpo. Mal conseguia por-se de
pé. Soube através de alguns sevos que me são amigos, que inúmeras vezes, nem
conseguia trabalhar; mas era largado na areia, sob o sol quente, sem alimento
ou água; quando o dia terminava novamente traziam-no arrastando-o no solo.
Porem sobreviveu a tudo. O senhor já o viu?
-
Sim Job, o vi pela manhã e fiquei perplexo com o homem que encontrei.
-
Comentam os servos, que se exercita incessantemente o dia inteiro; não
faz somente as tarefas que lhe são impostas como os outros companheiros.
Empenha-se nelas com um esforço físico demasiado; perdoe-me a ousadia senhor
Ricardo, mas comentam que age como um guerreiro...
-
Percebi isto também Job; estava manuscrevendo mensagem alertando o
Lorde Orlando sobre isto quando entrastes.
Ricardo parou para lhe mostrar o pergaminho lacrado.
-
Job, e tua esposa, encontraste-a bem? E tua filhinha?
O servo olhou-o agradecido por se lembrar delas,
falando-lhe humildemente:
-
Minha filha já é uma linda menina de sete anos e minha esposa espera
novo filho!
-
Serás pai novamente Job; que alegria para ti! Devo vê-la e oferecer-lhe
meus cuidados médicos. Que faz?
-
É uma das auxiliares da cozinha Senhor Ricardo. E a minha filha também
já colabora!
-
Então vamos até lá, desejo conhece-las e aproveito para alimentar-me;
já me sinto enfraquecido!
Ricardo acompanhou Job, esquecendo-se
temporariamente do pergaminho em cima da escrivaninha. Job sentia-se feliz com
a preocupação e os cuidados do medico para consigo e com sua família. Chegando
á cozinha, na qual varias servas aprontavam a numerosa alimentação, Job
aproximou-se de uma menina clara e de olhos amendoados, dizendo-lhe:
-
Vem no papai!
A menina aproximou-se abraçando-o carinhosamente.
-
Senhor Ricardo, esta é minha filhinha, Sara.
Ricardo sorriu-lhe afável:
-
Sara és uma linda menina!
Job, então chamou:
-
Linia, vem até aqui!
Uma jovem de cabelos cacheados, que estava sentada
de costas, juntamente com outras servas, levantou-se virando-se para atender o
seu chamado. Ricardo imediatamente sentiu-se fraquejar e sentou-se rapidamente
numa cadeira que lhe estava próxima.
-
Compreendo o seu assombro Senhor Ricardo.
O médico Ricardo perplexo não conseguia retirar o
olhar da jovem que parecia ficar extremamente constrangida. Job falou ao
medico.
-
Senhor, sei que o senhor está impressionado porque minha esposa é
incrivelmente parecida com a
senhorita Brigith; não lhe fosse a estatura mais baixa um pouco, e a idade de
vinte anos poderíamos estar certos de ser ela mesma.
A semelhança era impressionante. O médico poderia
afirmar com certeza naquele instante de que Linia era irmã de Brigith,
sendo-lhe três anos aproximadamente mais nova, mas em semelhança que a
identificaria facilmente como uma irmã gêmea. Sussurrou com a voz tremula:
-
O Lorde a conhece?
-
Não senhor Ricardo. Linia era filha de um velho servo que tinha suas
tarefas longe desta moradia. Quando seu pai morreu e como eu já me interessava
em desposa-la o fiz prontamente. Linia tinha apenas dez anos e eu assumi o
compromisso de respeita-la até que
completasse quinze anos. Assim o fiz e logo após concretizarmos o matrimonio,
Linia ficou esperando nossa filha Sara. Quando viemos para a moradia, o Lorde
já havia partido !
-
Job a menina Brigith nunca veio a Adredanha?
-
Não senhor Ricardo, não teve
oportunidade de fazer a viagem; quando o Lorde ia traze-la para que
conhecesse o mar de Adredanha, o seu
irmão Anderson adoeceu... o resto o
senhor sabe !
Ricardo olhou
Linia com respeito, desculpando-se:
-
Perdoai-me Linia; surpreendi-me porque és muito parecida com a filha do
Lorde..
Linia envaideceu-se, agradecendo.
-
Job me disse que esperas um filho?
A moça respondeu-lhe modestamente.
-
Sim senhor, mas ainda não tenho barriga; senti-me mal e a velha
curandeira da vila, disse-me que esperava um menino!
-
Depois te examinarei para ver se esta' tudo bem contigo e com teu
filho, se Job teu marido permitir!
Job aceitou a oferta médica e Linia afastou-se
pedindo-lhes licença. Job apressou-se a servir a refeição ao médico!
Este se alimentou em silencio e Job rumou a sua lida
no trato com a moradia de Lorde Orlando.
Ricardo após alimentar-se fechou-se em seu aposento
para divagar. Intuitivamente rasgou o pergaminho que havia escrito e queimou-o
Deitou-se em seu leito. Em toda a sua experiência médica, nunca vira seres tão
semelhantes que não fossem irmãos... precisava encontrar uma explicação lógica
para a incrível semelhança de Linia com Brigith. Poderiam ambas serem filhas do
lorde Orlando mas geradas por mães diferentes possivelmente também muito
parecidas na cor da pele, traços fisionômicos, cor de olhos... mas ainda assim,
a semelhança era impressionante, sendo estas crianças geradas em ventres
maternos tão distintos. Era mais um,
dos inúmeros mistérios da criação, que o homem não tinha ainda condições de
explicar!. Um eventual mistério do destino, tentando revelar o que
oculto estava, com o claro objetivo de entrelaçar vidas.
Impressionado ficara também, em perceber que o
Lorde nunca vira aquela mocinha que
poderia com certeza chamar de filha se o desejasse.
Temia estar fazendo deduções precipitadas, mas a
lógica parecia ser uma só, não haveriam outras explicações .
Achava interessante também ninguém na propriedade de
Adredanha, poder reconhecer tão incrível semelhança, a não ser ele, Job e Gabriel... a conclusão
assombrou-lhe os pensamentos." Como reagiria Gabriel se visse
Linia?"..."Como agiria este com Job?"....O médico sentia enorme
vontade de procurar Job. Encontrou-o lavando o piso do imenso salão nobre.
-
Job atrapalho-te?
-
Não senhor Ricardo, mas preciso prosseguir com a lida!
-
Porque o Lorde Orlando te
escolheu para cuidar de seu filho Anderson!
-
Veio um mensageiro do castelo, e
em mensagem a Luís, pedia que este
providenciasse um servo letrado, forte e jovem. Este deveria viajar
prontamente para o seu castelo, afim de
tomar conta de seu filho enfermo ! Luís gostava muito de meu trabalho e sabia
que eu era exímio contador de estórias
quando estávamos no repouso da lida dos campos. Escolheu-me e mandou-me para
lá... Ainda lhe pedi que permitisse que eu levasse Linia e Sara, mas este não
consentiu, dizendo que eu não teria
tempo para elas, cuidando do filho do Lorde que estava muito enfermo.
Convenceu-me que seria bom para mim e que não seria por muito tempo.
Comprometeu-se a ajudar Linia a cuidar
de Sara; e como me era grande amigo, resignei-me á ordem de meu senhor!
- Quando conhecestes Brigith, Job; não te
assustastes?
-
Sim senhor Ricardo, também fiquei perplexo com a incrível
semelhança física. Porem conclui que era mera coincidência.
Fiquei amigo da senhorita Brigith e me sentia imensamente bem ao seu lado ; A
sua semelhança com Linia auxiliava-me a não me sentir tão saudoso de Linia e
Sara.
-
Não achas que podem ser irmãs?
-
Senhor Ricardo, nunca pensei
nisto, seria um enorme absurdo! Soube que a esposa do velho ancião, a
mãe de Linia, morreu quando ela tinha sete anos! Nada mais sei!
-
Não tiveram outros filhos? A Linia não tem irmãos?
-
Não senhor; soube pelos servos que os pais de Linia, não foram abençoados com filhos;
a filha Linia lhes veio
tardiamente quando o seu pai já estava velho. Dizia este, que Linia lhe era uma
benção e que eu deveria cuidar dela com imenso carinho e respeito. Foi o que
lhe prometi em seu leito de morte e assim tenho agido .
-
Sabes como era a mãe de Linia?
-
Dizem senhor que era uma serva clara e bonita; casando-se quando ainda
era muito jovem.
-
Job, quantos anos viveram
juntos?
-
O senhor me deixa confuso com tantas perguntas. Creio que viveram uns
vinte anos juntos.
Ricardo desculpou-se pelas perguntas e caminhou até
os jardins da moradia. Sentou-se num banco e refletiu nas respostas de Job. Se
o matrimonio dos pais de Linia durara vinte anos o medico concluiu que haviam
se unido quando a mãe de Linia tinha
apenas quatorze anos. Concluiu
prontamente também, que se a mãe de Linia falecera com trinta e quatro anos
esta já tinha idade suficiente a ser cuidada somente pelo pai. Na sua
experiência de médico, estranhava que num matrimonio tão longo somente tão
tardiamente ser abençoado com uma criança. Por todas as reflexões que fizera ao
longo daquele dia, poderia afirmar com convicção que a mãe de Linia haveria se
encontrado furtivamente com o Lorde.
Ricardo
estava intrigado com o destino; quantos Lordes não se ocultavam nos pátios dos
servos submissos a escravidão de trabalhos e isentos de títulos de nobreza e
suas vantagens .
Por sua vez Job , intrigava-se com o dialogo que
tivera com o médico Ricardo. Lançada lhe fora a dúvida em suas constantes
indagações. Seria realmente Sara, a sua filha, a neta de Lorde Orlando; seria
sua esposa Linia uma filha perdida do
nobre; a incerteza inquietava-o Terminada a tarefa no salão voltou a cozinha
onde encontrou sua esposa nos afazeres. Analisou-a enquanto esta trabalhava;
realmente o senhor Ricardo poderia estar certo, a semelhança era injustificável não fosse por esta razão.
Um arrepio frio lhe percorreu o corpo, se Gabriel a
visse, em sua paixão doentia haveria de pensar que Brigith não morrera e que
todos lhe haviam lhe ocultado isto.
Os servos não podem se aproximar dos enterros dos
nobres; e o de Brigith não foi diferente. Lembrou-se que Gabriel permaneceu
imóvel , encostado em uma árvore distante, enquanto o corpo de Brigith era
sepultado.
Os pensamentos rápidos traziam-lhe angustia.
Coincidentemente sua esposa esperava um filho e possuía a idade de Brigith
quando esta morreu."Gabriel
enlouqueceria". Job sentiu ânsia de abraçar Linia e assim
protege-la de seus pensamentos. Afastou-se e voltou a lida.
-
Precisamos conversar Job!
-
sim senhor Ricardo.
-
Acompanha-me até meus aposentos!
Job acompanhou-o apressado; em sua apreensão também
sentia enorme vontade de conversar com o médico. entraram no pequeno aposento e
Ricardo pediu a Job que se sentasse.
-
Job temos problemas a resolver, estou certo que devo resolve-los
contigo.
-
Sim senhor. depois de suas perguntas despertei para as evidencias.
Realmente Linia é filha de Lorde Orlando... apavoro-me em pensar que Gabriel a
veja e que em sua paixão doentia pense que o enganamos; e que esta seja Brigith
esperando o seu filho... o que faremos senhor?
Job estava aparentemente aflito gesticulando as maõs
constantemente.
-
acalma-te Job , precisamos
ficar tranqüilos sempre para pensarmos e agirmos com ponderação e sensatez;
assim evitaremos possíveis erros.
Ricardo pôs-se a caminhar de um lado para o outro
dizendo-lhe:
-
Rasguei o manuscrito que mandaria ao Lorde; escreverei no entanto
outro; procura o mensageiro e pede-lhe que se apronte para a viagem antes do
anoitecer.
-
Perdoai-me senhor Ricardo. O que escreverás?
-
Job tranqüiliza-te nada direi por agora de Linia; somente pedirei que
venha com urgência para Adredanha.
Job tranqüilizou-se, confiante nas atitudes do
médico e saiu para procurar o mensageiro. Ricardo pegou a pena, envolveu-lhe o
bico na tinta e escreveu:
"Senhor Lorde
Orlando
Problemas na propriedade de Adredanha.
Faz-se
necessário a sua presença!
Seu servo
Ricardo."
Cuidadosamente lacrou o pergaminho e saiu do
aposento carregando-o consigo.
Já o sol descia no horizonte, quando o mensageiro
saiu rumo ao castelo de Lorde Orlando num galope ligeiro. Ricardo olhou-o
sumindo na distancia, na esperança de que não tardasse e que breve o Lorde ali
estaria.
Longos dias se passaram sem noticias .
O médico Ricardo passava os dias tratando de alguns
servos que lhe pediam auxilio e depois ia para seu aposento refletir.
Linia entrara no sétimo mês de gestação e Ricardo
preocupado freqüentemente observava; lembrava-se de Brigith e de seu filho tão
precipitadamente ceifados da vida.
Naquela manha quando os servos se aprontavam para
seguir para a lida, Luís o chamou dizendo-lhe:
-
Preciso que olhes o braço de um servo, parece-me que quebrou os ossos!
-
Diz-me onde encontra-lo Luís.
Luís apontou em meio aos servos das salinas, e Ricardo
observou que se tratava de Gabriel. O medico chamou-o fazendo-lhe um gesto.
Gabriel se aproximou amparando o braço direito que se encontrava contorcido, no
entanto ele não demostrava qualquer expressão de dor. Gabriel olhou-o
cumprimentando-o com um meneio de cabeça pois estava ciente de que o capataz o
observava.
-
Como te feristes Gabriel?
Gabriel surpreendeu-se em como aquele medico,
incumbido de olhar tantos servos, no castelo e naquela propriedade, conseguira
se lembrar com tanta facilidade de seu nome. tentando não demostrar a surpresa
que sentia, respondeu-lhe:
-
O tonel caiu sobre o meu braço ontem na lida nas salinas! Senti dores a
noite inteira e não consigo movimenta-lo.
Ricardo examinou-lhe o braço atenciosamente enquanto
Luís dispensava os demais servos para que prosseguissem para a lida. Ordenou
que alguns auxiliares acompanhassem o grupo enquanto ficaria ali com aquele
servo .
Gabriel mais uma vez se surpreendia; porque o
capataz Luís não acompanhara os demais servos, ficando ali exclusivamente para
vigia-lo, como se o considerasse um ser demasiadamente perigoso. Sentia pela
primeira vez, em meio aqueles dois anos que ali estava naquela propriedade, que
o capataz tinha ordens rígidas de vigia-lo.
Com seus vinte e seis anos de idade, como poderia
ter sido tão ingênuo!
Percebera inúmeras vezes que os demais servos eram
atendidos pelo medico e que o capataz não os ficara vigiando; caminhando estes
sozinhos para a lida depois do atendimento.
Propositadamente havia deixado o tonel cair
violentamente sobre o seu braço, pois somente assim teria a oportunidade de
aproximar-se do medico e da moradia; conseguira o que tanto ambicionara; agora no entanto os fatos que percebia na tão
almejada aproximação lhe eram surpreendentes. Concluiu indignado que durante
todo aquele tempo era vigiado rigorosamente e ingenuamente não o percebera.
Ricardo observou que Gabriel estava cabisbaixo e
pensativo. A sua fisionomia séria
mostrava claramente estar indignado. Olhou para Luís e falou-lhe:
-
Quebrou o braço senhor Luís! Será necessário colocar algumas talas para
firma-lo!
Luís ficou irritado, pois sabia que Gabriel não
poderia voltar a lida com completa mobilidade e demoraria a se restabelecer.
Indagou:
-
O que o senhor precisa?
O médico explicou-lhe que precisava de algumas talas
de madeira do tamanho do ante braço de Gabriel; também boa quantidade de pano
que podesse rasgar fazendo uma longa faixa. Luís prestativo saiu de perto para
pegar o material solicitado pelo medico, deixando temporariamente Ricardo
sozinho com Gabriel, defronte á moradia. O medico pediu a Gabriel que se
sentasse e indagou-o:
-
Estás muito apreensivo, sentes dores?
Gabriel ainda que as sentisse respondeu mostrando
superioridade:
-
Sou mais forte que a dor senhor Ricardo.
Ricardo estava também abaixado, tentando colocar os
ossos do ante braço na posição adequada, quando Job saiu da moradia
despreocupado; pensava que Gabriel já havia saído para a lida nas salinas. Este
aproximou-se sorridente sem perceber quem o medico medicava:
-
Senhor Ricardo, sua refeição matinal está pronta!
Ricardo levantou-se num impulso momentâneo de
sobressalto e Job empalideceu ao ver ali o servo Gabriel.
-
Irei tão logo termine de auxiliar este servo!
Ricardo ansiava afasta-lo rapidamente e Job
compreendendo-o saiu apressado e ocultou-se na moradia.
Gabriel em sua perspicácia percebera com objetividade o sobressaldo do
medico e observara as reações do servo Job. Concluíra prontamente que Job se
ocultara na moradia desde que ali chegara. Estava intrigado com tantos
mistérios que repentinamente pareciam se descortinar diante de seus olhos. O
medico Ricardo retornara a auxilia-lo com seu braço, mas parecia demasiadamente
preocupado e tenso. Gabriel resumiu em sua mente paulatinamente, o capataz Luís
o vigiara integralmente aqueles dois anos, tratando-o impiedosamente e com
extrema crueldade que se diferenciava do tratamento com os demais servos; com
os quais era tolerante e por vezes até misericordioso; com certeza cumprindo
ordens de lorde Orlando ; Job certamente se escondia em tarefas na moradia ,
nunca o vira nas reuniões festivas dos servos, incrivelmente naquele longo
tempo nunca se encontrara com ele; e o medico alem de se lembrar com extrema
facilidade de quem era, se sobressaltara com a aproximação de Job e agora ainda que tentasse disfarçar a tensão
lhe estava descrita nos olhos e nos movimentos...Gabriel parecia decifrar
naquele conjunto de circunstancias o enorme mistério; "com certeza Job
contara ao médico o que sabia, este por sua vez teria contado ao lorde; e este
ordenara a reclusão de Job e a vigília de Luís..."porem não conseguia
compreender porque o lorde ciente de tudo não o matara ou enclausurara! As
inúmeras indagações em sua mente faziam-no ficar demasiadamente confuso.
Sentia-se inexplicavelmente atraiçoado; como se fosse uma fera cercada por
todos os lados. Gabriel contorceu-se sentindo uma dor violenta em seu braço e
despertou de seus pensamentos.
-
Perdoai-me Gabriel, mas precisava dar este esticão em teu braço,
finalmente chegou na posição correta.
Gabriel meneou a cabeça mostrando haver
compreendido, mantendo-se silencioso. Logo Luís chegou com o material pedido;
parecia que se haviam passado longas horas, mas este retornara rapidamente em
alguns minutos de ausência.
Ricardo finalmente havia conseguido imobilizar o
braço de Gabriel. O olhou dizendo-lhe:
-
Podes ir Gabriel. Deverás voltar a procurar-me daqui a cinco dias para
que eu veja a tua recuperação.
Olhou Luís e explicou-lhe:
-
Gabriel não poderá trabalhar com este braço assim.
Gabriel agradeceu-lhe novamente num meneio
silencioso e afastou-se com Luís que também lhe agradeceu os cuidados com o
servo e ambos rumaram para as salinas.
No caminho Luís deu instruções a Gabriel para que
auxiliasse os servos das valas. Poderia pegar o sal e ensaca-lo com o braço apto .
Gabriel pouco o ouvia. A mente se dispersava em
pensamentos de raiva com sua ingenuidade, como não percebera os movimentos
ocultos mas tão óbvios que o rodeavam. Sentia-se irado pela inocência que não
mais possuía mas que lhe vedara os olhos. Saberia agora da necessidade de estar
mais atento a tudo que ocorresse ao seu redor. Virou-se e imediatamente
constatou o capataz Luís que o observando atentamente em semblante temeroso.
Haviam chegado ás salinas e imediatamente dirigiu-se ás valas como lhe fora ordenado,
e iniciou a tarefa á qual fora
incumbido.
Gabriel estava quase restabelecido do ferimento em
seu braço, quando finalmente o
Lorde Orlando
chegou á propriedade de Adredanha.
Apressado e extremamente preocupado entrou na
moradia e encontrou o servo Job lavando os imensos vitrais das janelas. Ordenou
friamente:
-
Chamai-me o medico; estarei na biblioteca esperando-o!
O lorde apresentava o semblante cansado e Job que se
assustara com sua entrada repentina apressou-se a chamar Ricardo que se encontrava
em seu aposento.
-
Porque bates tão apreensivo Job?
-
Perdoai-me senhor, mas o lorde chegou e parece nervoso. Mandou-me
chama-lo!
Ricardo apreensivo
rumou prontamente para atender a ordem. Job seguiu-o interrompendo-o
aflito.
-
Senhor, peço-lhe que não fales sobre Linia!
O medico olhou-o ternamente explicando-se.
-
Perdoai-me Job, mas terei que comunicar tudo o que sei. Não te
inquietes, tudo se resolverá!
Job inexplicavelmente não conseguia tranqüilizar-se.
Sentia-se temeroso com uma enorme sensação de tristeza que prenuncia dias de
amargura e agonia. Chegando na biblioteca daquela moradia, Ricardo entrou
pedindo licença, e o lorde num aparente mau humor foi-lhe indagando rudemente.
-
Ricardo, o assunto deve ser demasiadamente sério para me obrigares a
viagem tão longa!
-
Senhor Lorde, temos inúmeros problemas aqui e somente o senhor poderia
resolve-los!
O medico então calmamente colocou-lhe ciente dos temores que sentira ao
rever Gabriel em seu novo corpo físico e em como procedia nas tarefas das
salinas. O Lorde enfurecido interrompeu-o indignado.
-
Ricardo, te desesperastes porque Gabriel tornou-se um servo exemplar e
cumpridor de suas obrigações?
-
Perdoai-me Senhor Lorde, mas creio que observando-o, o senhor
compreenderá minha preocupação.
-
Nada fez de errado nestes dois anos?
-
Não senhor lorde, mas...
-
Fazes-me tu, viajar longos dias, para dizer-me que devo preocupar-me
com um servo que o único erro que cometeu nesta propriedade, foi o de
fortalecer-se e tornar-se um homem?
Ricardo sentia-se confuso com a arrogância do Lorde
Orlando.
-
senhor Lorde, algo me diz que é perigoso, seus olhos brilham revolta e
por isto lhe pedi que viesse!
O Lorde Orlando olhou-o desiludido, censurando-o :
-
Lamentável Ricardo; sempre te considerei um servo ponderado nas
atitudes e por esta razão confiei-te a missão de vires a esta propriedade. Não
consigo compreender a insensatez que tivestes em me trazeres até aqui...
O lorde enfurecia-se e extremamente exaltado
prosseguiu:
-
Recebi a tua mensagem e preocupei-me em demasia; enormes prejuízos nas
atividades desta propriedade surgiram-me na mente; Abdiquei de enorme
compromisso em viagem á corte; viajei tenso e em angustia; e agora tu me dizes
que é nada!
Ricardo aflito falou-lhe:
-
Senhor Lorde, perdoai-me novamente, posso ausentar-me rapidamente!
-
Que desejas fazer agora Ricardo, desejo explicações de tua atitude tão
precipitada e imponderada!
-
Senhor Lorde concedei-me uma licença, prometo-lhe ser breve!
O Lorde Orlando consentiu contrariado levantando-se
e caminhando impacientemente. Ricardo apressado saiu da biblioteca e breve
retornou pedindo novamente licença ao nobre para entrar. Este concedeu-a
voltando-se para novamente sentar-se na poltrona. Olhou para Ricardo e sentiu
que enorme emoção lhe aflorava em lagrimas. As suas pernas estremeceram fragilidade.
Sentando-se rapidamente balbuciou atônito quase sem voz:
-
Brigith !?
Ricardo encaminhou a jovem para mais próximo do
lorde dizendo-lhe:
-
Não senhor lorde; esta é a serva Linia; a esposa do seu servo Job!
O lorde tentou conter as lagrimas, sentindo-se
ridículo em sua nobreza, ainda que a emoção ainda se expandisse saudosa em sua
memória. Ricardo falou-lhe vagarosamente:
-
Senhor Lorde, estou certo que me precipitei em que viesse a esta
propriedade com tanta brevidade; mas não sabia como agir com tudo o que vi
aqui...um servo que destroi a sua família se torna fisicamente um guerreiro;
uma filha que surge sendo-lhe desconhecida...
Linia estremeceu escutando as palavras do medico e
balbuciou perplexa:
-
Filha?
Ricardo fez-lhe um sinal carinhoso para que silenciasse.
O lorde observava-a atentamente. Indagou curioso:
- Quem é a tua mãe Linia?
Linia olhou-o intrigada, mas rapidamente baixou o
semblante em sinal de respeito e humildade perante o nobre, respondendo-lhe:
-
Minha mãe faleceu tem quase treze anos senhor!
-
Senta-se Linia e falai-me dela!
Linia obedecendo a ordem do lorde sentou-se
desajeitada em função da barriga, que inúmeras vezes lhe trazia incômodos e
contou constrangida:
-
Quando tinha sete anos senhor, minha mãe morreu!
O lorde impaciente em sua ansiedade suplicou:
-
Que fazia ela na propriedade? Qual o seu nome?
Linia se sentia coagida pelo lorde e começou a
sentir-se mal, sem no entanto aparentar os incômodos e dores que sentia.
Sentiasse temerosa pela autoridade do lorde.
-
Seu nome era Amancia e auxiliava na cozinha desta moradia quando ainda
era jovem. Quando ficou me esperando passou para as tarefas da costura, no
galpão perto do lago.
O lorde lembrou-se das ordens que dera ao capataz
que as mulheres que engravidassem deveriam ser afastadas da moradia ou da lida
em tarefas mais amenas, necessário lhe era"" preservar a vida saudável dos servos que lhe
faziam falta e a de suas crias "... lembrou-se também que pedira a Luís
que protegesse Job e sua família e por isto, com certeza aquela jovem ali ainda
estava na moradia ainda que esperasse um filho...sentia-se confuso! Lembrara-se
prontamente da serva Amancia; assemelhava-se a sua esposa Joane com seu porte
esbelto, cabelos levemente ondulados, pele alva, olhos amendoados; mas era a seus olhos imponentemente mais
graciosa que sua esposa; o sorriso de Amancia era encantador em sua
espontaneidade e constante alegria. Houve afeição imediatamente reciproca tão
logo conhecera a serva e os encontros breves e ocasionais eram inevitáveis no
amor que ambos sentiam. Recordou-se
ainda, que Amancia havia lhe falado de seu esposo, e da enorme diferença de
idade entre ambos. Sim, recordava-se saudoso daquela jovem que tanto amara e
estava convicto de que Linia era sua filha. Olhou-lhe o ventre exclamando para
si "e o filho que esperava lhe seria um neto"...Sentia-se atordoado
nas lembranças e no reencontro com um passado distante que o emocionava. O
lorde sem saber o que dizer ao medico ou á jovem que olhava-o amedrontada,
ordenou que saíssem da biblioteca. Ricardo obedeceu prontamente auxiliando
Linia a levantar-se e sair da biblioteca.
Somente quando caminhavam no corredor, que Ricardo
observou que Linia estava extremamente pálida e tremula.
-
Sentes-te mal Linia?
Linia olhou-o suplicante perdendo imediatamente os
sentidos. O medico Ricardo amparou-a prontamente e cuidadosamente carregou-a no
colo, atravessando o salão onde Job os esperava. Vendo a esposa adormecida no
colo do medico desesperou-se:
-
O que houve senhor?
-
Ajudai-me Job, tua esposa não está bem; precisamos leva-la até os meus
aposentos!
Rapidamente levaram-na deitando-a no leito. O medico
examinou-a constatando que Linia estava com imensa hemorragia. Concluiu que
precisava tirar-lhe o bebe para que podesse salvar-lhe a vida. Olhou Job que o
olhava angustiado e falou-lhe com seriedade absoluta:
-
Job temos que tirar a criança, se não Linia morrerá, está perdendo
muito sangue!
Job desesperou-se. Faltavam ainda dois meses para
seu filho nascer. O medico implorou-lhe.
-
Rápido Job, me ajuda! Preciso de panos e água quente agora!
As pernas de Job não lhe obedeciam. Permaneceu
imóvel em estado de choque. Ricardo percebendo que ele pouco poderia auxiliar,
ajudou-o a sentar e correu até á copa pedindo ajuda a duas servas.
No aposento Job permanecia perplexo em nervosismo
que o imobilizava. Ricardo despertou Linia com os sais e em violentas
contrações e o auxilio de uma serva que lhe empurrava o ventre, finalmente o
medico consigo pegar a criança. O bebe estava agora imóvel em seus braços.
Ricardo tentou em vão reavivar o pequenino ser. Morrera em parto prematuro.
Enquanto Ricardo tentava salvar a vida de Linia,
interrompendo-lhe a hemorragia; Job
permanecia em estado de choque "amava demais aquela mulher não poderia
perde-la!".
Foram longas horas de auxilio medico ininterrupto e
Linia fora salva; dormindo agora profundamente em exaustão. Enquanto
as servas auxiliavam a limpa-la e a tirar-lhe as vestes e mantas sujas, Ricardo
caminhou até Job e disse-lhe colocando-lhe a mão no ombro:
-
Linia ficará bem!
Somente então as lagrimas verteram nas faces do
servo que olhava o pequenino vulto ainda próximo ao leito, envolto num pano.
-
Meu filho...
-
Sim Job, não resistiu! Era um lindo menino!
Ricardo amparou-o num forte abraço fraterno e então
Job caminhou até o pequenino vulto e o aconchegou no colo em profundo pranto
sentido.
O medico olhou-o encorajando-o:
-
Deus assim o quis Job; tens graças a Ele a tua esposa de volta...terão
outros filhos com sua benção!
Job parecia inconformado apertando o pequenino em
seus braços fortes, como se desejasse devolver-lhe a vida. Depois deixando a
criancinha com o medico, caminhou até sua esposa Linia adormecida e
afagando-lhe a face disse aos prantos:
-
Nosso filhinho era lindo!
Ricardo caminhou até Job consolando-o, enquanto as
servas levavam o bebe sem vida.
-
Deves agora te preocupares com Linia; precisará de tua força, de teu
conforto e de teu amor!
Job concordou meneando a cabeça afirmativamente. A
tristeza lhe era absoluta. Sentou-se numa cadeira próximo á esposa e ali ficou
tentando-se conter no pranto.
- Senhor Ricardo, eu amo esta jovem; sempre amei;
desde que era apenas uma menina e cuidava dela como um pai! Sinto que é uma
parte de mim e faria qualquer coisa nesta vida, para não vê-la triste!
Ricardo balbuciou:
- Estarás perto dela quando despertar, precisará
desse imenso amor que demonstras com tanta força e sinceridade!
Ricardo afastou-se para lavar-se e enquanto as
servas terminavam com a limpeza do seu aposento, caminhou determinado até á
biblioteca. Encontrou o lorde ainda pensativo percebendo somente então nos
vitrais, que já anoitecera.
-
Senhor lorde preciso falar-lhe!
O lorde ainda parecia ausente nos inúmeros
pensamentos. Pensara a tarde inteira, se deveria ou não assumir aquela filha e
se o fizesse em que providencias deveria tomar...se a esposa fosse viva
ignoraria a filha bastarda Linia em respeito ao matrimonio; mas a sua esposa e
sua filha haviam falecido; sentia-se muito só com seu filho Arthur e este logo
casaria possivelmente distanciando-se do castelo e indo morar em outra propriedade;
a sua vida se tornara fria e sem objetivos; concluíra que não se importava com
as convenções sociais da corte e
assumiria a filha Linia; com certeza Arthur compreenderia. Os problemas seriam
inúmeros, estava ciente, mas naquele momento o lorde somente conseguia
visualizar a alegria retornando ao castelo; ter a sua filha de volta, e um
netinho correndo nos jardins; lembrou-se repentinamente que o servo Job falara
de uma filha; que idade teria, gostaria de ver sua neta! O lorde Orlando olhou
para Ricardo que o aguardava paciente.
-
Senta-te Ricardo!
O medico sentou-se observando que o nobre havia se
acalmado e ainda que se mostrasse cansado e preocupado, parecia sereno.
-
Senhor Lorde, Linia passou mal e perdeu a criança que esperava!
O lorde levantou-se extremamente preocupado.
-
Onde está minha filha? Está bem?
Ricardo olhou-o perplexo com a sua reação de
preocupação para com aquela que até tão pouco desconhecia como filha.
-
Senhor Lorde, está em meus aposentos e repousa após intensa hemorragia!
Com o repouso necessário e alimentação substanciosa ficará boa.
O lorde ordenou emocionado.
-
Desejo vê-la agora!
Ricardo estava impressionado com o Lorde Orlando.
Sempre fora frio e indiferente; estranhava aquele nobre tão superior reconhecer
a filha bastarda que lhe era Linia e de preocupar-se com ela.
Desde que o conhecera sempre o vira zelando somente
pelos interesses lucrativos de suas propriedades e pela proteção de seus
familiares, o resto não lhe tinha qualquer valor. Era um lorde friamente
superior preocupado sempre consigo; a nobreza era-lhe inexistente em valores
para com os outros! Ricardo acompanhou silencioso o lorde até o seu simples
aposento. Job imediatamente assustou-se com a presença daquele senhor ali e
afastando-se do leito reverenciou-o .
O lorde caminhou ao leito e acariciou as ondas
cacheadas dos cabelos de Linia. Recordou-se saudoso que o mesmo gesto
apaixonado também fazia em sua mãe Amancia.
Observou preocupado , a face extremamente pálida de
Linia, e percebeu que esta despertava. Falou-lhe emocionado:
-
És minha filha Linia e serás tratada de hoje em diante como a filha de
um lorde. Sentes-te bem?
Linia sentindo-se imensamente fraca e confusa com
aquela situação, olhou ao redor procurando Job. O servo sentindo-lhe a angustia
falou-lhe tentando tranquiliza-la sem poder se aproximar:
- Estou aqui querida Linia, fica tranqüila!
O lorde
afastando-se do leito ordenou ao medico que imediatamente transferissem a sua
filha para o melhor aposento da moradia e que este deveria cuidar
exclusivamente dela até que se recuperasse completamente. O medico Ricardo, o
servo Job, e uma serva que ali estava presente, sentiam-se perplexos com as
palavras do lorde mas obedeceram-lhe imediatamente as ordens. Linia foi
transferida para um imenso aposento requintado e luxuoso.
Iniciava-se uma nova vida para Linia.
Mostrasse inconformada com a perda do filho, mas
encantava-se com o aposento luxuoso em que se encontrava. Vislumbrava extasiada
o leito grande e macio; as mantas alvas e sedosas; os cortinados cobrindo os
belíssimos vitrais coloridos das janelas. Á sua direita uma vasta cômoda em
madeira generosamente trabalhada sustentava um imenso espelho de cristal.
Tapetes coloridos revestiam o chão numa beleza radiante em ramagens
multicoloridas. Esfregava os olhos julgando ás vezes que apenas estava sonhando e que despertaria de seu sonho tão
magnifico; mas a paisagem do aposento se mantinha silenciosa e serena ao seu
redor.
Lembrou-se do quartinho árido em que dormia com Job e Sara; não possuía
mobiliário ou requintes; o leito era macio mas improvisado com algumas mantas
que Job conseguira em trabalho primoroso; alongando-se no piso frio. Assim
sua filha Sara também podia dormir mais comodamente. Banhavam-se
rapidamente num tonel que seu marido conseguira com o capataz Luís, que lhes era amigo. E num pequenino
cômodo adjacente faziam as necessidades fisiológicas.
Recordando-se em passado mais longínquo
vislumbrou-se numa casinha da vila dos servos que não diferenciava muito das
acomodações dos servos na imponente
moradia. A pobreza era aparente e a simplicidade era reinante e
absoluta.
Linia nos seus vinte anos de juventude sentia-se
renascer para uma nova vida e sentia-se demasiadamente bem com a abundância
repentina.
Lembrou-se de sua mãe, sempre sorridente e feliz,
ainda que a vida lhe fosse penosa ao lado do seu pai. O velho, exausto da lida
era áspero e grosseiro. No seio do seu lar a sua mãe era a mais submissa das
servas ao seu próprio marido, que inúmeras vezes a agredia por mero prazer de
vê-la entristecer-se. Mas logo sua mãe superava as dores da convivência, e
mostrava-se reluzente em felicidade a tudo e a todos... até que um dia seu pai
agredindo-a fez com que caísse e sua cabeça bateu violentamente na parede de
pedra da pequena moradia e ela nunca mais voltou a ser a mesma; os movimentos
lhe foram sendo tirados gradativamente até que faleceu; Seu pai contara a todos
que era uma febre e ninguém ousava se aproximar; somente Linia, que lhe levava as refeições e lhe amparava em
todos os cuidados.
Desde os sete anos a vida não lhe fora fácil ou
harmônica. A sua infância anteriormente a esta idade eram contínuos dias de
convivência dolorosa com o sofrimento de
sua mãe e com as agressões que lhe eram impostas. Após os sete anos de idade o
pai voltara a violência contra si , maltratando-a e também agredindo-a. Relembrava revoltada
que o velho nunca lhe fora um bom pai.
Veio-lhe a paz
quando seu pai faleceu, tinha então dez anos e Job prontamente a
desposou.
Job sempre fora um bom marido, respeitou-a
calorosamente até á sua formação adulta,
tratando-a como uma filha; quando se
tornou mulher, no entanto, se viu obrigada a concretizar o matrimonio lhe sendo
a esposa . Sentia que Job a amava em plenitude, mas nada sentia pelo marido,
era-lhe mera obrigação de esposa. Sentia-se
agradecida e desejaria viver com ele somente como um irmão; Constrangia-se com
a imposta convivência matrimonial.
Prontamente ficou grávida de sua filha Sara, e dois
anos após Job viajava obedecendo ordens,
para o castelo. Aí sim, a vida lhe era plena. trabalhando na costura e
cuidando da filha. Sentia-se livre do pai violento; Sentia-se livre do marido
que a sufocava; com um amor asfixiante
que não sentia . A incomodava.
Finalmente sentira a liberdade e sentia-se feliz; mas seu marido Job retornou
após longo período ausente, e em seu
retorno vieram-lhe as obrigações matrimoniais tão difíceis e tão penosas .
Mas agora Linia estava ali, o Lorde afirmava ser seu pai; e ainda que
não sentisse qualquer afinidade com
este, aproveitaria a oportunidade que a vida lhe ofertava.
Nas amargas lembranças a noite foi-se adiantando e
já era tarde quando lembrou-se da
ausência de sua filha Sara e de seu
esposo Job... "com certeza, estariam no pequenino quartinho, frio e
úmido?!" pensou indiferente. Isto não lhe importava agora. Vislumbrou o candelabro acima de seus
olhos, em pingentes cristalinos iluminados pela chama das velas quase extinta e
dormiu!
-
Dormistes bem minha filha?
Linia abriu os olhos ainda sonolenta e percebeu que
o Lorde estava sentado em uma poltrona
próximo a si. O olhar era terno e
carinhoso; no entanto parecia
demasiadamente triste. Linia tentou levantar-se mas a cabeça lhe parecia
extremamente e deitou-se novamente sentindo-se contrariada com o
incomodo:
-
Deves repousar para te fortaleceres minha filha; sofrestes muito!
Somente ela sabia o quanto sofrera em sua vida, mas
manteve-se silenciosa.
-
Compreendestes quando eu disse ser teu pai ?
Linia meneou a cabeça em negativa, olhando-o
- Amei muito a tua mãe Amancia e em determinada
época de nosso passado vivemos intenso romance ... Contou-me da vida difícil
que levava com seu velho esposo... mas estava sempre sorridente e feliz; ela
era encantadora e linda; Trouxe imensa alegria a meus dias, e auxiliou-me a
levar o meu matrimonio tão repleto de convenções... mas sou um nobre e tinha
esposa e filhos pequenos a respeitar. Tinha responsabilidades e não podia
simplesmente largar tudo, pelo sentimento que lhe tinha...
O Lorde
sobrecarregou mais ainda o semblante de tristeza, e continuou:
-
Não tenho qualquer dúvida de que sejas minha filha; e desejo reparar a
ausência deste pai durante estes teus vinte anos, e honrar a memória daquela
jovem que só me traz doces e felizes lembranças...desconhecia por completo a
tua existência?
Linia estava atordoada com as revelações que o Lorde
lhe fazia com integra espontaneidade. No dia anterior lhe era a serva submissa;
agora o Lorde lhe acariciava e pedia
compreensão. Olhou-o carinhosamente e balbuciou:
-
Senhor Lorde, agradeço-lhe os cuidados e a preocupação que demonstra
para comigo, mas...
O Lorde interrompeu-a acariciando-lhe os cabelos:
-
Nunca mais me chames de senhor Lorde, me chamarás de pai!
Linia insistiu com dificuldade:
-
Senhor meu pai, onde esta Sara? E Job meu marido?
Lorde compreendeu que esquecera-se que sua filha
Linia era casada e tinha uma filha, e sentiu-se confuso.
- Era muito tarde quando viestes para teus aposentos
e esqueci-me deles... desejas vê-los?
Linia em verdade não sentira a falta do marido e nem
mesmo da filha; desejava ser livre e desfrutar sozinha a nova vida que se
descortinava para ela.
- Estou tão
cansada senhor meu pai!
O Lorde prontificou-se:
-
Direi a todos que não te sentes bem e precisas repousar; colocarei
imediatamente uma serva como tua ama ; ficara á tua disposição e o médico
Ricardo prontamente virá ver-te... está bem assim?
Linia agradeceu-lhe meneando a cabeça
afirmativamente fingindo imenso cansaço.
-
Agora te deixarei repousando
filha!
O Lorde levantou-se beijando-lhe a mão
carinhosamente e retirou-se do aposento. Descia a imensa escadaria para ir se
alimentar quando Job o interrompeu humildemente e apreensivo:
-
Senhor Lorde Orlando, perdoai-me dirigir-lhe a conversação, mas estou
deveras apreensivo com minha esposa Linia , gostaria imensamente de vê-la!
O Lorde olhou-o complacente; dizendo-lhe:
-
Estive com ela agora Job, e
ainda sente-se imensamente cansada, muito sofreu, deves compreender! Deixai-a
ao repouso, mais tarde irás vê-la!
Job compreendeu o Lorde e ainda que ansiasse em demasia ver a sua querida esposa, agradeceu-lhe
reverenciando-o e retirando-se.
O Lorde caminhou para fazer a sua refeição e
posteriormente saiu para ver os servos saindo para a lida. Pediu que
providenciassem uma montaria e acompanhou os servos que partiam para as salinas. Astuto e vivaz,
percebeu rapidamente, que Gabriel
caminhava em meio aos outros, com o braço direito imobilizado em talas; chamou
Luís que se pôs a caminhar ao lado de
sua montaria:
-
Que aconteceu com o servo Gabriel?
-
Senhor Lorde , atrapalhou-se na lida e quebrou os ossos do braço!
O Lorde persistia em olhar Gabriel :
-
Ficou forte o rapaz, não Luís?
O capataz tentava acompanha-lo, ofegante; a montaria era mais veloz:
-
Sim senhor; fiquei muito surpreendido com o seu fortalecimento; estava
disposto a avisa-lo de meus receios, mas o senhor Lorde aqui veio a tempo...
O Lorde Orlando olhou-o intrigado, a apreensão
parecia a mesma do médico Ricardo.
-
Porque receias o fortalecimento do servo Gabriel , Luís?
Finalmente
chegavam as salinas e o Lorde Orlando apeou da montaria, colocando-se ao
seu lado, aguardando a resposta do capataz.
-
Senhor Lorde, nada fez Gabriel de errado nestes dois anos que aqui
esteve; mas o comportamento é estranho e superior, é altivo e imponente; os olhos são frios e cruéis; não posso
acusa-lo de nenhum ato prejudicial á sua propriedade, mas sinto-o o mais
vil de seus servos!
Era-lhe surpreendente a narração de Luís a respeito
de Gabriel. O Lorde indagou-lhe:
-
Que achas que seria capaz de
fazer? Fugir?
Luís ficou
pensativo e respondeu-lhe:
-
Se desejava fugir senhor Lorde, o teria feito!
-
Que me dizes Luís?
-
Digo-lhe senhor, que Gabriel não possui amigos ou mulheres; passa
diversas noites de repouso a vaguear pelos arredores da vila dos servos...o sei
porque inúmeras vezes, segui-o atentamente ;
estou ciente de que nunca fui
visto por Gabriel. Certa vez chegou
perto do grande rio... forte do jeito que é o subiria sem problemas! Sempre
observando-lhe e temendo-lhe uma fuga
sei que lá voltou diversas vezes; se desejasse fugir o teria feito!
-
Que achas Luís, que seria capaz de fazer?
O capataz
sentiu-se temeroso de revelar-lhe suas suspeitas, mas o fez:
-
Senhor Lorde, são meras suspeitas de um modesto capataz; não sei que
males fez no seu castelo, mas diria-lhe que os seu olhos planejam vingança e
para isto se prepara fisicamente!
As palavras de Luís eram fortes, e Lorde Orlando
silenciou para analisa-las, observando ao longe o servo Gabriel esforçando-se
na lida.
Após muito examinar e refletir o Lorde encaminhou-se
para a moradia.
Job percebeu-o entrar e fazendo-lhe breve reverencia
disse-lhe:
-
Senhor Lorde, peço-lhe permissão para ver minha esposa e levar-lhe a
refeição; gostaria imensamente de levar
nossa filha Sara para vê-la também, insiste angustiada em vê-la!
O Lorde observou-o atentamente; nada possuía do corpo atlético da nobreza; era forte e
robusto , mas possuía traços de mero camponês. Faltavam-lhe os traços nobres de
uma raça superior; longe estava de lhe ser o genro desejado!
-
Traga-me a menina desejo
conhece-la!
Job obedeceu a ordem prontamente, retornando breve
com a menina sorridente.
O Lorde olhou-a carinhosamente; a pele era rosadamente clara; o semblante
delicado em traços finos, destacavam a nobreza de sua família. Parecia-se
demasiadamente com sua mãe e poucos traços tinha da rudeza do seu pai. A
estatura lhe era boa para a idade em porte elegante e andar sutil.
Olhava-o intrigada e balbuciou:
-
Senhor Lorde meu nome é Sara!
O lorde perplexo com sua iniciativa o que mostrava
ser expontânea e demasiadamente inteligente respondeu-lhe ao cumprimento.
-
Sara meu nome é Orlando e sou seu avô; chegue até aqui e me dê um abraço.
A menina olhou Job meio encabulada; e Job fez-lhe um
gesto para que se aproximasse do Lorde. A menina aproximou-se do nobre, a idade
já lhe era aparente nos cabelos e na barba que já se esbranquiçavam. A fisionomia era séria e triste. O Lorde
abraçou-a com força, sentindo-se saudoso da família que perdera. Lágrimas sutis vieram-lhe aos
olhos e tentou disfarça-las, dizendo rapidamente:
-
Vai ver tua mãe, deves estar com saudades!
A menina sorriu-lhe agradecendo. Job também
reverenciou-lhe e ambos afastaram-se, subindo a escadaria.
Job bateu na pesada porta de madeira rústica ,
pedindo licença para entrar. Uma serva a abriu e Job entrou com Sara, naquele
aposento que tantas vezes arrumara com esmero e dedicação. Caminhou ao leito
preocupado e radiante:
-
Minha querida , como estás?
Job beijou Linia com imenso carinho e ternura. O
amor que ele sentia, aflorava nas faces morenas que se rosavam. Era aparente e
inegável o sentimento que se expandia em cada gesto ou expressão.
Linia olhou-o friamente e depois olhou a filha que
se encantava com os adornos do aposento.
-
Vem até aqui filhinha!
Sara se aproximou saudosa da mãe, dando-lhe um beijo
meigo. Job insistiu mostrando demasiada preocupação:
-
Estás bem querida Linia?
Linia olhou o imenso lustre de pingentes cristalinos, dizendo-lhe:
-
Perdi nosso filho Job!
A voz lhe era seca e sem emotividade. Job acariciou-lhe os cabelos,
aproximando-se:
-
Deus assim quis minha querida, somos muito jovens, temos uma vida pela
frente; sinto imensa vontade de estar próximo a ti... como será nossa vida
agora?
Linia fitou-o silenciosa e depois olhou a filha que
novamente distraia-se com as finas
rendas das cobertas.
-
O Lorde Orlando é meu pai!!!
A exclamação era-lhe de entusiasmo , Linia
prosseguiu:
-
Não compreendo muitas coisas, mas disse-me ele; que não tem dúvidas que
sou sua filha e deseja que eu me comporte como uma nobre!
Job olhou-a apreensivo; dizendo:
-
Disse-te o senhor Lorde como ficará a nossa vida? És minha esposa! Sara
sente tua falta!
Linia olhou-o
indiferente:
-
Sentia-me mal nada falamos sobre isto!
Job novamente acariciou-a dando-lhe terno beijo em
suas mãos:
-
Diz-lhe querida, que sentes nossa falta; desejo ficar próximo a ti!
Falarei com o médico Ricardo também, sinto dúvidas de como proceder com esta
nova situação.
Linia concordou meneando a cabeça e mostrando imenso
cansaço. Job prontamente percebendo que precisava repousar antecipou-se em
imenso compreensão e respeito que lhe tinha.
-
Linia minha querida, agora irei para a lida, mais tarde virei ver-te! A
serva te dará a refeição que fiz com amor.
Job despediu-se novamente beijando-lhe
carinhosamente a face. Sara também
aproximou-se abraçando-lhe fortemente:
-
Posso ficar contigo maezinha?
Linia olhou-a dizendo-lhe:
-
Minha filha preciso repousar , ainda estou doente!
Sara olhou-a tristonha despedindo-se.
Quando os dois se retiraram do aposento, novamente
Linia pôs-se a admirar a decoração, enquanto a serva lhe auxiliava a
alimentar-se.
Quando Job chegou ao salão principal, percebeu que o
Lorde não mais estava ali. Pediu a Sara que fosse para a copa, e procurou o médico Ricardo nos seus aposentos. Pedindo-lhe permissão para entrar
Job encaminhou-se ao seu interior:
-
Perdoai-me senhor Ricardo, mas preciso de seus conselhos, estou
imensamente angustiado!
O médico olhou-o compreensivamente, dizendo-lhe para
se sentar:
-
O que se passa contigo amigo Job?
Job sentou-se olhando-o apreensivo:
-
Não compreendo senhor , como
proceder em situação como esta? Pela manha coube-me a tarefa de enterrar meu
pequeno filho em imenso sofrimento... agora tenho que pedir permissão ao Lorde
para ver a minha esposa... o que faço? Tudo parece ter mudado em nossas vidas !
O médico olhou-o piedosamente e agindo como um pai
disse-lhe:
-
Job, terás que te acalmar, a situação é nova para todos e ainda há
inúmeras providencias a concluir por parte do Lorde. Não temas! Pela tarde
falarei com ele, mas deve acalmar-te e ir para a lida; deverás pensar que Linia
está em repouso e não seria apropriado estares a seu lado constantemente!
Job, sentindo-se mais tranqüilo disse-lhe:
-
O senhor falará com o Lorde a respeito de minha esposa e de minha
filha?
O médico Ricardo afirmou-lhe que sim, e Job saiu
tranqüilo. Ricardo parou para refletir em toda aquela situação; e
posteriormente resolveu ir ver o estado
de saúde de Linia.
O sol ainda brilhava no horizonte do majestoso mar
de Adredanha quando Gabriel retornou pensativo á vila dos servos. Após
banhar-se e pegar a quente refeição noturna sentou-se próximo á sua casinha
para alimentar-se. O capataz Luís aproximou-se dizendo-lhe rudemente.
-
O Senhor Lorde deseja ver-te!
Gabriel sentiu um frio arrepio de receio
vasculhar-lhe cada canto de seu forte corpo. Uma intuição em seu interior lhe
dizia que teria problemas. O capataz continuou:
-
Largai tudo e me acompanha, deseja ver-te agora na biblioteca.
Gabriel levantou-se para acompanha-lo. Os
pensamentos eram-lhe aflitos e temerosos mas ordenados. Concluíra naqueles
últimos dias, que realmente Job havia alertado o medico Ricardo sobre o
terrível engano com o chá que matara Brigith. Ciente também estava que o
capataz Luís tinha conhecimento do mesmo e pudera observar pela manhã a maneira
minuciosa com que o lorde o analisava na lida. O braço ainda se encontrava preso nas talas, mas pelo tempo
que estava imobilizado sentia que já estava bom. Angustiou-se ciente de que o
Lorde o julgaria e o condenaria pela morte de sua filha. Sentia-se um animal
acuado na mira de vários caçadores. O céu ainda alaranjado o fez lembrar de
Brigith e do amor que ainda lhe era intenso e saudoso no seu peito. Se ela
estivesse ali com certeza o defenderia do julgamento errado de seu pai; como
provaria ao Lorde Orlando que o culpado da morte de Brigith era Job e não ele;
como lhe explicaria que o sofrimento lhe veio duplamente com a morte de sua
amada e de seu filho. A brisa fresca soprou-lhe a face dando-lhe ingênua
esperança...se angustiava demasiadamente sem fundamento, com certeza o lorde o
chamava simplesmente para anunciar o seu retorno ao castelo. Sentiu-se
momentaneamente entusiasmado. O capataz Luís interrompeu-lhe os pensamentos
fazendo-o entrar na moradia.
Pela primeira vez Gabriel entrava na moradia de
Adredanha. Seus olhos rapidamente vasculharam o ambiente, os salões, a escadaria,
a entrada para a copa e cozinha... avistou o servo Job cuidando com esmero do
jardim central e percebeu que este prontamente o viu, mostrando aparente
perplexidade . Atravessando uma enorme sala de estar encontraram-se com o
medico Ricardo que também olhou a presença de Gabriel com surpresa aparente.
Gabriel concluíra que ambos não tinham conhecimento de que o Lorde o chamara. O
capataz bateu na porta da biblioteca e o Lorde ordenou que entrassem:
-
Luís, deixai Gabriel aqui e sai!
A voz de Lorde Orlando era grossa e fria. Sério lhe
era também o semblante e o olhar era fixamente hostil
Luís saiu da biblioteca fechando a porta e
manteve-se em guarda nesta. O medico Ricardo observou á distancia aquele servo
com a mão propositadamente posta sobre o imenso facão na cintura. Rapidamente
aproximou-se de Job indagando-lhe em tom baixo e preocupado:
-
Porque o Lorde mandou chamar Gabriel, Job?
Job olhou-o também aflito.
-
Não sei senhor Ricardo, também estou surpreso e preocupado!
O médico sem mais nada lhe dizer afastou-se
inquieto, mas ali também permaneceu para poder verificar os acontecimentos.
O Lorde estava frente a frente com Gabriel. Olhou-o
demoradamente o que o deixou constrangido. Ordenou-lhe que se sentasse e
Gabriel temerosamente obedeceu. Estavam ambos sentados. Gabriel mantinha-se de
cabeça baixa enquanto o Lorde estrangulava em seu interior inúmeros sentimentos
antagônicos. Falou ferozmente:
-
Assassino!
Gabriel permaneceu imóvel. O grito de Lorde Orlando
parecia haver o esfaqueado; era-lhe o julgamento pensou.
-
Assassino frio e cruel! Matastes meus filhos! Matastes meus amigos!
Matastes minha esposa! Desgraçastes a minha vida acabando com a minha família!
O Lorde não conseguia conter-se na fúria tanto tempo
represada dentro de si, mas mantinha-se sentado olhando fixamente para Gabriel.
Este se sentia confuso com tantas acusações. Num impulso balbuciou:
-
Senhor Lorde, o que diz?
As palavras expressas em profunda ingenuidade e
inocência por Gabriel acentuaram a ira do nobre, esmurrando a mesa que os
separava, com extrema violência.
-
És sinico e cruel; és vil e medíocre; Ainda que sejas nobre és a mais
desprezível criatura!
As palavras do lorde afloravam em emoções sem
qualquer controle; Gabriel não compreendia; não era um nobre e não matara como
falara, mas achou mais prudente ficar quieto e ouvi-lo em sua ira.
- Minha filhinha, minha linda filhinha, que fizestes
com ela? Disseram que a amavas; como tiras a vida, a felicidade, à família de
quem amas? E meu filho, o meu primogênito, destruíste-lhe a vida por duas vezes?
Acabastes com o lar de meus amigos, matando-lhe o único herdeiro? E me dizes
que nada sabes? Ingênuo demais fostes Gabriel, em achar que tais crimes não
teriam condenação! Não te percebias que eras observado, porque desgraçastes
tantos? Porque destruístes tantas vidas?
A fúria parecia se amenizar nas palavras que eram
expelidas em raiva e incompreensão por parte do lorde. Gabriel sentia-se
tremulo, mas tentava manter-se imóvel. Sentia que lhe era o fim; o lorde estava
ciente de tudo que fizera por amor, mas nunca compreenderia. Com um golpe
mortal e em impensado impulso de ódio lhe tiraria a vida. Desejava poder lhe
explicar, mas como o fazes se o lorde não parava de lhe fazer acusações em
maioria irreais...
-
Não tens qualquer valor Gabriel, deveria esquartejaste em mil pedaços,
fazendo-te sentir a dor que sinto na perda de tantos entes que me eram
queridos; deveria fazer-te agonizar tal qual fizestes com Henri II; privar-te
de movimentos e asfixiar-te tal qual fizestes com meu filho Anderson; envenenar-te
como fizestes com minha doce Brigith; condenar-te á agonia e sofrimento tal
qual; fizestes com minha esposa Joane... Deveria retribuir todo mal que
causastes... deves estar te perguntando, porque não o fiz antes; infelizmente
tens o sangue de minha família; não posso matar fria e covardemente o irmão de
minha esposa... Como te sentes Gabriel ao saber que eras o tio dos meus filhos
aos quais tirastes a vida? Como te sentes em saber que matastes a irmã, que te
protegia sempre á distancia e ocultava teus inúmeros perdoando-te?
Gabriel estava perplexo; sentiu-se invadido de
repentina emoção e lagrimas se dispersavam tremulamente roliças em suas faces
involuntariamente.
- Não finjas emoção Gabriel, isto me repugna!
Pessoas medíocres tal qual tu não sentem dor! Não sofrem! Mas vivem para causar
dor e provocar sofrimento.
Após o imenso desabafo repleto de emoção, lorde
Orlando sentia-se exausto, baixou a cabeça e exclamou:
-
O que faço contigo Gabriel?
Gabriel, contendo-se na emoção que também sentia,
encorajou-se lhe dizendo humildemente:
-
Senhor Lorde, eu a amo ainda. Eu amo sua filha Brigith! Sofro a
angustia de não te-la ao meu lado; sinto imensa felicidade pelo meu filho que
nunca vou conhecer, foi uma seqüência de erros e enganos... Não desejava matar
Henri II, desejava feri-lo para que não houvesse noivado e eu tivesse tempo a
conversar com Brigith sobre nosso amor; Não desejava ferir seu filho Anderson,
precisava retardar vossa viagem, eu precisava falar com ela sobre nosso futuro;
Não desejava matar seu filho, o chá que lhe mandei somente iria fazê-lo
repousar, mas em Brigith o chá foi mortal porque estava esperando um filho; não
era um chá letal como pensam todos... não intencionava angustiar sua esposa e
ainda que não compreenda direito, minha irmã...digo-lhe senhor lorde que o
destino tramou infamemente sobre mim fazendo-me a mais infeliz das criaturas
por tantas conseqüências penosas...creia senhor, sou pessoa boa e o único erro
que cometi, foi amar extremamente Brigith...
O Lorde interrompeu-o indignado dando violento berro
autoritário:
- Luís venha aqui agora!
O capataz rapidamente entrou.
-
Levai Gabriel para a masmorra perto do lago!
Gabriel olhou-o suplicante.
-
Senhor eu nada fiz, o destino tramou contra todos nós!
Lorde Orlando enfureceu-se esbravejando:
-
Levai-o Luís! Levai-o daqui antes que eu mesmo não me contenha e o
mate!
O capataz Luís arrastou Gabriel para fora da
moradia, diante dos olhares de Job e Ricardo. Gabriel gritou-lhes:
-
Vocês julgaram errado... vocês concluíram errado...eu não sou o culpado,
não sou...eu sou inocente...eu só a amava !
Luís deu-lhe uma coronhada para que se calasse e o
levou rumo à masmorra.
Na agora silenciosa moradia de Adredanha, os gritos
de Gabriel ainda pareciam ecoar.
Já anoitecera. Gabriel ainda transtornado recordou-se
que avistara a masmorra certa vez em seus passeios noturnos. Era um conjunto
arquitetónico sem grande grandiosidade ou imponência. Seis ou sete janelas
gradeadas delineavam-se num piso superior.
Luís caminhava serio com o imenso facão fincando-lhe
as costas; Gabriel olhou o seu braço imóvel nas talas; a noite escura o
auxiliaria a fugir e na densa folhagem próxima ao rio facilmente se ocultaria.
Atravessaram a vila dos servos sob os olhares curiosos destes. Luís prontamente
chamou dois auxiliares para o acompanharem levando aquele servo até á masmorra;
prontamente estes lhe atenderam a ordem portando também seus facões.
Gabriel não compreendia como aquele lorde envolvido
em tanta emoção e fúria, fora tão ingênuo em pedir a um mero capataz para
prendê-lo; porque não o ordenara a seus guerreiros. O capataz Luís era astuto e
perspicaz precavera-se em pedir auxilio a dois outros servos, mas estes não
seriam suficientes a dete-lo.
Nada mais tinha a temer; quando se aproximavam de
estreita passagem próximo ao rio, Gabriel que caminhava na frente pôs-se a
correr velozmente entrando na densa vegetação, sendo perseguido pelos servos
que lhe faziam a guarda. Os pés lhe eram velozes na força que adquirira e ainda
que estivesse descalço os obstáculos eram tranqüilamente transpostos pelos pés
duros e calejados pela árdua lida. Luís o perseguia bem próximo ordenando-lhe
que parasse e que não teria para onde fugir. Mas Gabriel não desejava ouvi-lo
em fuga desesperada.
Ciente estava que ao entrar naquela masmorra de lá nunca
mais sairia. O braço ainda imobilizado nas talas lhe dificultava o equilíbrio,
mas persistiu em desesperada fuga.
Bem em meio á mata densa, Gabriel um pouco adiante
do capataz e dos outros, ocultou-se em grandes rochedos e contendo a respiração
extremamente ofegante aguardou a aproximação de Luís. Assim que este alcançou a
posição onde estava Gabriel pulou em seu dorso. A luta foi violenta e rápida.
De posse agora do facão Gabriel apunhalou-o ferozmente fazendo corte profundo
em sua nuca. Luís ficou imóvel perdendo os sentidos.
Gabriel novamente continuou a fuga porque os outros
dois servos se aproximavam. Um dos servos colocou-se a auxiliar o capataz,
levando-o imediatamente para a moradia, enquanto o outro continuou perseguindo
Gabriel que corria desesperado.
Gabriel precisava pensar rápido, sentia que se
perdera e não tinha mais certeza de onde estava o leito do rio; poderia estar
correndo em círculos; teria que parar o servo que ainda o seguia para depois
fugir tranqüilamente. Quanto mais entravam na mata, mais escuro ficava somente
o barulho dos pés na folhagem identificariam sua posição. Com imensa
dificuldade, mas com a enorme força de seu braço esquerdo, conseguiu subir numa
frondosa arvore.
Tentou conter a respiração ofegante e descontrolada,
para não ser localizado pelo servo que ainda o perseguia. Este se aproximou de
onde estava, tentando rastea-lo na folhagem quebrada, uma vez que somente havia
agora o barulho silvestre.
Gabriel precisaria dete-lo, pois logo este rastearia
onde estava. Esperou que se afastasse um pouco e desceu da arvore
vagarosamente, seguindo-o passo a passo. Logo se aproximou golpeando-o no dorso
com o facão de Luís, o servo caiu ao solo contorcendo-se de dor. Gabriel firmou
um dos facões na cintura com um pequeno cipó e o outro facão portou em sua mão
esquerda.
Precisava continuar a fuga, sabia que breve lorde
Orlando mandaria os guerreiros á sua procura. Precisava saber onde estava o
rio, pois somente assim saberia a direção da fuga subindo este.
Ficou imóvel aguçando a audição e não muito distante
escutou barulho de água. Correu então nesta direção e logo o localizou.
Sabia que o rio descia até o mar e que deveria subir
em sentido oposto.
Decidiu tirar as talas finalmente de seu braço e
ainda que lhe fosse difícil ao inicio, logo conseguiria fazer movimentos com a
mão, não usaria extrema força.
Gabriel começou a correr subindo o rio e ofegante
decidiu parar e tomar um pouco de água. Repentinamente compreendeu que deixava
um rastro na margem, com o seu cheiro e o seu pisar.
Prosseguiu em caminhada apressada margeando o rio e
subindo-lhe o leito com os pés sob a água.
Estava exausto a caminhada já havia sido longa; não
sabia onde aquele rio iria dar, mas decidiu continuar a fuga. Somente pararia
para descansar pela manha.
Na moradia Lorde Orlando se preparava para dar boa
noite a sua nova filha Linia, quando o servo deu-lhe a noticia da fuga de
Gabriel e falou-lhe do ferimento de Luís.
Lorde Orlando imediatamente acionou os seis
guerreiros que o acompanhavam nas viagens freqüentes, dizendo-lhes que lhe
trouxessem o servo vivo ou morto.
Sentia-se profundamente ingênuo em permitir que ser
tão vil, somente fosse levado á masmorra por Luís; como ousara ser tão
desprecavido.
Sabia que Gabriel subiria o leito do rio, muitos
servos o haviam feito em épocas anteriores.
Os guerreiros com certeza o pegariam, não houve
somente um que escapasse; logo teria noticias, e isto o deixava tranqüilo.
Pediu ao médico Ricardo que fosse auxiliar o capataz
e posteriormente rumou ao aposento de Linia para vê-la!
Ricardo aproximou-se de Luís que estava próximo a
moradia, sangrando em demasia.
O médico pediu aos servos que o auxiliassem a
levá-lo para o seu aposento e lá Ricardo observou-lhe o ferimento.
O corte era fundo, mas Luís se reabilitaria. Luís tentava
desesperadamente falar com Ricardo, pois já recobrara os sentidos, mas o médico
conteve-o dizendo-lhe que se continuasse se esforçando para falar mais o
ferimento sangraria.
Então o capataz serenou e Ricardo pôs-se a
medicá-lo.
Percebeu quando Job se aproximou assustado
dizendo-lhe temeroso:
-
Ele vai nos matar! Vai nos matar a todos...
Ricardo interrompeu-o pedindo-lhe calma e
dizendo-lhe que precisava cuidar de Luís e depois conversariam.
Job então se afastou pensativo.
Gabriel percebeu que a noite clareava.
Os pés estavam demasiadamente feridos e cortados
pelas pedras e areia da margem do rio pela qual caminhara apressado noite a
dentro.
Breve estaria amanhecendo; a paisagem não se
modificara; muita vegetação e o rio na mesma dimensão.
O suor lhe varria a face e freqüentemente umedecia
com água fria.
O cansaço era imenso e parou para refletir.
Sabia que os guerreiros com certeza também subiam a
margem do rio; precisava pensar.
Gabriel decidiu prosseguir e quando se aproximava o
calor com o sol que se erguia em majestade e a claridade que descobria tudo e
todas as coisas, Gabriel avistou uma imensa cachoeira.
Alegrou-se com a possibilidade de ali conseguir um
refugio para repouso.
Vasculhou as pedras de diversos ângulos e percebeu
que próximo a uma imensa pedra onde descia água em abundância havia uma
abertura.
Aproximou-se e percebeu então uma enorme gruta que
se ocultava sob a água.
O refugio seria perfeito por alguns dias.
Gabriel recolheu alguma folhagem para fazer um
leito; ciente estava que não poderia fazer fogo, pois este geraria fumaça.
Procurou ainda algumas frutas e verduras silvestres que pudesse comer e também
as levou para a gruta em abundância.
Lá finalmente deitou-se e adormeceu.
Gabriel acordou com o barulho dos guerreiros que se
aproximavam da cachoeira.
Poderia observá-los sob a água, sem ser visto.
Visualizou que eram seis e suas fisionomias demonstravam imenso cansaço.
Concluiu que o seguiram noite a dentro sem
interrupções.
Olhavam atentos em todas as direções e Gabriel
percebeu que analisavam o rastro de seus pés na folhagem quando procurava
alimento.
Gabriel sentiu-se temeroso ouvindo um deles falar:
-
Aqui o servo parou para comer; deve ter prosseguido...
Mas Gabriel tranqüilizou-se quando outro continuou:
-
Alimentou-se e continuou subindo o rio, caminhando na água; logo o
encontraremos, estamos próximos; as pegadas são bem frescas; e o abismo na
frente não dá continuidade e este não sabe disto; terá que retornar...
E os seis riram tentando espantar o cansaço.
Gabriel analisou-lhe as palavras; havia um abismo
depois da cachoeira; com certeza esta se originava de um imenso lago...
Concluiu que fizera bem em se ocultar ali, jamais o encontrariam.
Ficou observando-os se distanciarem, e quando o sol
já ia alto, viu-os retornando frustrados.
A fuga tinha sido um êxito!
Voltavam inconsoláveis á moradia de Adredanha.
Gabriel suspirou aliviado e novamente adormeceu.
Já anoitecera na moradia de Adredanha quando os
guerreiros adentraram procurando Lorde Orlando.
Este lhes recebeu na biblioteca, em intensa
expectativa:
-
Então o trouxeram? Onde está? O trouxeram vivo ou morto?
Os guerreiros olharam-se entre si, em conivência e
cumplicidade. Adiantou-se um deles:
-
Senhor Lorde Orlando o encontramos próximo ao abismo, mas este em
completa covardia atirou-se para a morte nas profundezas dos rochedos...
O Lorde irou-se com a noticia pedindo-lhes detalhes.
Os guerreiros disseram-lhe então pausadamente que haviam encontrado Gabriel
próximo a uma árvore no final da cachoeira. Este quando os viu, correu na direção
do abismo e percebendo que estava sem saída, atirou-se em desespero para a
morte.
Lorde Orlando baixou a cabeça inconformado e
dispensou os guerreiros.
Sabia que não havia maneiras de resgatar um corpo no
imenso abismo que finalizava em pontudos rochedos; e então se conformou com a
morte de Gabriel, noticiando-a a todos.
Os guerreiros o fizeram porque não poderiam admitir
um fracasso ao Lorde, este perderia a confiança em seus serviços. Estavam
certos de que o servo fugitivo estaria bem longe do Lorde e de suas
propriedades e que jamais ali voltaria para revelar ao Lorde a imensa mentira!
A rotina voltou ao normal na propriedade de Lorde
Orlando.
Linia se restabeleceu por completo e agora caminhava
imponente na sua propriedade. A altivez lhe salientava os traços fisionômicos e
as roupas imponentes a faziam superior a seu marido e filha; com quem
encontrara raramente para diálogos. Lorde Orlando percebeu-lhe a distancia e
chamou-a para conversar na biblioteca:
-
Sentai-te Linia minha filha
Linia sentou-se confortalvelmente olhando-o
enternecida:
-
Que desejas senhor meu pai?
-
Andei observando-te! Fazem quinze dias que perdestes teu filho e há
quatro dias passeias por toda a propriedade...
-
Sim senhor meu pai sinto-me melhor!
O Lorde olhou-a pensativo dizendo-lhe:
-
Não sentes falta de Job teu marido, e de tua filha Sara? Nunca me
pedis-te para deixá-los perto de ti? Pouco te vejo procura-los para conversar;
são sempre estes que te procuram...
Linia estremeceu compreendendo o muito que o Lorde a
havia observado. O Lorde olhou-a carinhosamente:
-
Nada temas minha filha, desejo ver-te bem.
Linia encheu-se de coragem e disse-lhe:
-
Não gosto de meu marido senhor meu pai!
-
Não compreendo filha, casaste-te com ele; ao servos nada é imposto e
Job é extremamente afetuoso para contigo!
Linia forçou roliças lágrimas dizendo-lhe em soluços
o que passara em sua vida com o seu pai e depois com o seu marido. O Lorde
comoveu-se com a história da filha. Desejava ter-lhe evitado tanto sofrimento.
Segurou-lhe a mão:
-
Não desejas mais Job como marido?
Linia olhou-o intrigada.
-
Posso fazer isto senhor meu pai?
-
És minha filha e desejo ver-te feliz; aos nobres tudo é possível.
Poderás terminar com este casamento e com o tempo conseguirei um bom esposo de
família nobre para ti. Desejas?
Linia arregalou os olhos pensando num marido nobre e
elegante; sim desejava isto e o afirmou prontamente:
-
Gostaria imensamente de começar vida nova longe de Adredanha, com o
senhor meu pai!
-
E tua filha Sara?
Indagou-lhe o Lorde sempre atento as suas reações.
Linia baixou a cabeça:
-
Como lhe contei também não desejava uma filha. Sou muito jovem senhor.
Job poderá ficar com ela!
O Lorde compreendia o sofrimento de Linia, mas a
achava extremamente fria e indiferente, qualidades essenciais a um bom nobre.
- Não sentirás a sua falta?
-
Senhor Lorde, se o senhor é realmente meu pai, e deseja me fazer feliz,
me ofereça uma vida nova! O senhor pediu-me sinceridade, estou sendo senhor.
O Lorde estava impressionado com tudo que sua filha
lhe falava e sentia-se orgulhoso ao perceber que a personalidade lhe era forte
e determinada; pediu-lhe então que o deixasse só; precisaria refletir em
tudo.
Na bela manhã seguinte o Lorde despertou convicto a
realizar o desejo de sua filha Linia. Partiriam em três dias para a propriedade
do castelo e Linia começaria uma vida nova ao seu lado. Inúmeras providencias,
no entanto, ainda precisavam ser tomadas. O conhecimento da morte de Gabriel o
aliviava e acreditava que Deus havia feito a justiça.
Procurou o médico Ricardo, após alimentar-se, para
ter noticias do capataz Luís. Encontrou-o no aposento cuidando dos ferimentos
de seu servo. Este lhe informou que em alguns dias de repouso o capataz estaria
bem. No entanto um dos servos ferido havia falecido de madrugada, não
resistindo na intensa hemorragia.
Feliz pela melhora do capataz que lhe era
extremamente útil e ignorando a perda do outro saiu a procurar o servo Job.
Encontrou-o na lida e ordenou-lhe imediatamente que o acompanhasse ao aposento
de Linia.
Job surpreendeu-se com a ordem do Lorde, porém
acompanhou-o humildemente com a imensa esperança de que sua rotina matrimonial
voltasse à normalidade. Sentia enorme saudade da companhia de sua querida Linia
e da convivência feliz desta com sua filha.
Ambos entraram no aposento e esta se assustou
percebendo que o Lorde estava em companhia de seu marido. Linia estava vestida
elegantemente, num vestido de seda azul que fôra feito especialmente para si.
Nos longos cabelos cacheados uma linda fita realçava-lhe o encanto e a beleza.
Sorriu forçosamente cumprimentando-os e o Lorde pediu que ela se sentasse e
ordenou a Job que também o fizesse.
No aposento havia pequenos divãs que se encontravam
em prazerosa salinha de estar. Desta se visualizava a imensa janela avarandada
da qual se via a copa de longas palmeiras sacudindo-se com a brisa que provinha
do oceano.
O Lorde olhou-os pensativo e depois falou a Job:
-
Meu rapaz trouxe-te aqui para que possamos definir a situação de vosso
matrimonio...
Job alegrou-se intimamente, não ocultando a
satisfação que sentia em seu semblante. O Lorde prosseguiu:
-
Disse-me minha filha Linia, que deseja acompanhar-me em viagem
definitiva para o castelo...
Job sentiu-se perplexo. Como sua querida esposa
Linia decidira tal coisa sem falar consigo. Sempre afirmara gostar de
Adredanha. Olhou-a suplicante e ela baixou o semblante fazendo-se constrangida.
O Lorde pigarreou e continuou com tom sério e agudo.
-
Disse-me ela ainda que deseja ir só e esquecer definitivamente sua vida
de casada contigo Job.
Job levantou-se impulsivamente. Os seus olhos não
mais transpareciam alegria e serenidade. Faiscavam incompreensão e muito
sofrimento e dor. Olhou para Linia atônito com suas infinitas indagações de
amor, carinho e extrema afeição. Em atitude ainda impulsiva, ajoelhou-se á seus
pés, dizendo-lhe:
-
Não creio no que ouço querida; o senhor Lorde não deve ter compreendido
o que realmente desejas. És muito importante para mim; amo-te imensamente; como
poderei viver sem ti? Como nossa filha também viverá?
O Lorde interrompeu-o grosseiramente, ordenando-lhe
que se sentasse e tentasse se controlar. Job voltou a sentar-se, obedecendo à
ordem. O semblante de Linia o assustara apresentando imensa indiferença e
frieza. A situação era imensamente constrangedora. O Lorde olhou carinhosamente
a filha dizendo-lhe ternamente:
-
Querida, é importante que expresses teu desejo e a tua vontade a Job,
para que este compreenda!
Linia olhou o Lorde contrariada com a situação que
este lhe impunha. Falou firme:
-
Desejo partir com o senhor meu pai. Desejo esquecer-te e esquecer nossa
filha. Não lhes tenho sentimento maior de afeto. Desejo começar vida nova!
Novamente Job não se conteve e levantou-se em sua
direção colocando-se aos seus pés humildemente e já em prantos rogou-lhe em
soluços:
-
Não compreendo querida... O que te fiz... O que te faltou... Porque
desejas tanto nos deixar... Porque dizes não nos teres afeto...
Desta vez o Lorde apenas o observou sem interromper.
Linia levantou-se se sentindo incomodada com o marido aos prantos e suplicante
aos seus pés. Caminhou até a imensa janela e falou-lhe de sua vida. Falou-lhe
ainda do sentimento que não lhe tinha e da imposição num relacionamento no qual
era infeliz; disse-lhe que não desejava ter uma filha que lhe tirou a liberdade
tão cedo em sua vida. Job permanecia ajoelhado. Perplexo mantinha-se imóvel.
Não conseguia compreender ou aceitar tudo o que Linia narrava em tom de mágoa e
revolta. Sempre lhe fora um bom marido, o companheiro que a compreendia e
respeitava; afetuoso e carinhoso. Nunca a obrigara a nada e nunca lhe havia
imposto o que não desejasse. Linia jamais havia mostrado insatisfação ou
infelicidade com a união ou a convivência; pelo contrario parecia feliz e
realizada. Desconhecia completamente aquela Linia que ali estava ferindo-o, com
palavras tão frias e cruéis; tão injustificáveis na vida que lhe ofertara
sempre com muito amor. Linia parara de falar e o silencio somente era
interrompido pelo soluçar sofrido e angustiado de Job. O amor que sentia por
Linia estrangulava-lhe o peito sentindo-se asfixiar. O Lorde interrompeu o
silencio:
-
Como nobre que sou e em meus títulos de nobreza, dissolvo esta união e
declaro que Linia está livre do compromisso assumido com Job. Partiremos em
três dias para o castelo e minha querida filha começará uma vida nova.
Futuramente casar-se-á com um nobre. Ordeno-te servo Job que a esqueças e
quando partirmos dirás a Sara que a sua mãe morreu. Se te comportares
obedientemente de acordo com a vontade expressa de minha filha, estarás livre
para percorrer outro reinos se assim o desejares; No entanto se contrariares
minhas ordens serás julgado e condenado. Compreendestes tudo servo?
Job levantou-se com imensa dificuldade. Estava em
pleno estado de choque. As pernas estavam-lhe trêmulas e o semblante apático.
Falou mecanicamente:
-
Peço permissão para me retirar senhor Lorde Orlando!
O Lorde olhou-o insistindo friamente:
-
Compreendestes tudo servo Job?
Job permanecendo cabisbaixo sussurrou dor:
-
Sim senhor Lorde tudo compreendi.
O Lorde autorizou a sua saída e Job caminhou até a porta.
Antes de sair, no entanto, olhou Linia que permanecia indiferente á sua extrema
dor e imponente estava olhando o novo horizonte que se descortinava para si,
através daquela grande janela, que se abria cedendo-lhe plena liberdade.
Job desceu a escadaria. Roliças lágrimas
banhavam-lhe as faces morenas. Caminhou cambaleante e sem rumo. A imensa dor em
seu peito, o asfixiasse cada vez mais, mas Job a ignorava em sua perplexidade
com tudo que lhe fora dito por aquela a quem tanto amava e dedicara-lhe a vida.
Saiu da moradia e andou. Longa foi à caminhada em imenso sofrimento até que
visualizou o imenso mar de Adredanha. Não poderia suportar ver a mulher a quem
tanto confiara, respeitara e amara partindo para uma vida nova; não suportaria
a imensa dor de não mais te-la; não agüentaria ficar-lhe indiferente; as suas
palavras mantinham-se cruéis, frias e injustificáveis em sua mente. A dor não
lhe era somente cada vez maior no peito, mas doíam-lhe profundamente os
sentimentos mais sinceros e os valores que cristãos que sempre exemplificara em
sua vida. Silencioso olhou o mar. As testemunhas somente lhe eram as lágrimas;
Cruel e voraz era a incompreensão que lhe asfixiava cada vez mais,
destruindo-lhe a alegria e a força vital de seu coração.
O seu corpo não suportando o terrível impacto de
sentimentos tão dolorosos caiu sem vida sobre a areia fina.
Sara ficara órfã
de pai; e agora era deserdada pela própria mãe, que partia para sua nova vida,
com lorde Orlando. Era-lhe indiferente o futuro da sua filha ainda que soubesse
que deixava só aquela criança, após o falecimento do seu pai Job.
Ricardo acolheu Sara num forte abraço e a afagou
carinhosamente, tentando atenuar-lhe o imenso sentimento de perda, que
deslizava sutil, em lagrimas silenciosas, sobre suas faces infantis. Sua mãe já
sumira na distancia de uma estrada poeirenta. Ricardo abaixou-se a olhando
ternamente e disse-lhe:
-
Querida Sara, és apenas uma menina, mas sei que és esperta e tudo
compreendes; por isto nada te ocultarei; ainda que sofras sempre saberás a
verdade!
Sara com seus oito anos de idade, escutava-lhe
atentamente:
- Sabes que teu pai Job faleceu; no entanto não
sabes que o seu coração parou de bater repentinamente, porque não suportou o
imenso sofrimento que lhe causou Linia; decidindo abandonar-vos... Compreendes
o que te digo?
Sara, inexplicavelmente mantinha-se serena. As
lagrimas sutis e silenciosas não mais desciam sobre suas faces. O médico pensou
momentaneamente que a menina não o ouvia, mas esta o olhou com extrema
vivacidade e indagou:
-
O senhor vai cuidar de mim?
Ricardo abraçou-a novamente e Sara após lhe dar um
meigo beijo pediu-lhe:
-
Senhor, nunca mais chorarei pela mãe que não me quis. Desejo lhe pedir
um favor!
O médico olhou-a compreensivo, admirando-lhe a
serenidade e a aparente resignação a uma situação que sabia lhe ser
extremamente difícil, na perda de pais que lhe eram tão queridos.
-
O que desejas pedir-me Sara?
A menina pegou-lhe a mão para que se levantasse e
pediu humildemente.
-
Leva-me á praia. Meu pai pede que lá vá!
O medico olhou-a surpreso, sentindo que Sara não
havia compreendido.
-
Sara teu pai não está na praia, tem três dias que seu corpo foi
sepultado!
Sara olhou-o fixamente segura do que dizia.
-
Meu pai estará me esperando na praia.
Ricardo profundamente perplexo com o que aquela
menina afirmava com tanta convicção atendeu-lhe o pedido, e ambos caminharam
até á praia silenciosos. Lá chegando, Sara afastou-se sorrindo. Parecia
radiante como se dialogasse com alguém que ele mesmo não via. Chamou-a
insistentemente e esta após algum tempo atendeu-lhe o chamado.
-
Com quem brincas Sara?
Sara olhou-o surpresa.
-
Senhor Ricardo, converso com meu pai!
As firmes palavras de Sara percorreram-lhe o corpo
num arrepio frio.
-
Sara, quando as pessoas morrem não mais podemos vê-las ou conversar com
elas!
-
Senhor Ricardo, eu não sou uma menina mentirosa! Digo-lhe que meu pai
Job está aqui e conversa comigo. Posso vê-lo e neste momento está colocando a
mão no seu ombro. Pede que lhe diga que agora compreende porque Anderson sempre
dizia que um dia Brigith viria buscá-lo!
Ricardo
novamente arrepiou-se, Não sabia como Sara podia falar-lhe sobre algo que há
muito tempo acontecera. Em sua lógica concluiu que Job lhe contara. Perspicaz
desejando perceber até onde ia sua fantasia indagou:
-
Podes perguntar uma coisa a teu pai, já que ele está aqui?
Sara olhou pensativa como se avistasse alguém ao seu
lado e balbuciou respondendo-lhe o que ainda não perguntara.
-
Meu pai diz para tomares cuidado, porque realmente Gabriel não morreu.
Está escondido numa cachoeira próximo daqui. Meu pai diz que ficará por perto
para ajudar-nos e que posso falar com ele sempre que precisar.
O medico Ricardo não podia crer no que ouvia. Estava
certo de que a menina não conversava com seu pai, mas sem duvida teria um poder
oculto de ler-lhe o pensamento e em sua fantasia havia respondido sem qualquer
lógica á pergunta que formulara mentalmente sobre a morte do servo Gabriel.
Resolveu novamente testar-lhe a capacidade oculta e misteriosa.
-
Posso perguntar mais uma coisa a teu pai?
Sara disse-lhe que sim, mas desta vez esperou-lhe a
indagação.
-
Pergunta-lhe como morreu a menina Brigith e o menino Anderson.
O médico estava plenamente ciente de que Sara não
saberia responder-lhe. Pelo muito que conhecia Job, sabia que este jamais lhe
contaria crimes tão bárbaros. O silencio se fez por alguns instantes e somente
então Sara olhou-o dizendo:
-
Meu pai contou-me agora, que a menina Brigith foi morta por Gabriel,
que lhe fez um chá venenoso pensando que se destinava a seu irmão Anderson;
inconformado com a morte da mulher que amava e desejando vingança asfixiou
covardemente com um travesseiro o jovem Anderson!
O medico sobressaltou-se. Ali acontecia algo que não
conseguia compreender. Como aquela menina podia adivinhar os seus pensamentos e
visualizar o passado com tanta facilidade. Porem Sara agia com imensa
naturalidade e espontaneidade; caminhava agora na areia como se acompanhasse
alguém; Ricardo tinha uma incrível e absurda sensação de que realmente ela não
estava só. Em sua reliogidade seria uma heresia ousar questionar os princípios
da vida e da morte. Sentiu-se temeroso; "seria Sara uma bruxa com
estranhos poderes"; ouvira falar de algumas quando era jovem e estudava na
corte. E se fosse como a protegeria do julgamento cruel por assim o ser! Teria
que a fazer compreender e silenciar seus estranhos poderes. Ricardo olhou
temeroso para o imenso oceano, sentia-se demasiadamente confuso com tantos
mistérios; olhou o lindo céu claro e orou fervorosamente. A menina aproximou-se
sorridente interrompendo-o:
- Podemos ir embora, senhor Ricardo!
Sara parecia iluminada em imensa tranqüilidade de
alegria aparente no brilho de seus olhos. Perguntou receoso:
-
Ele foi embora?
-
Sim senhor Ricardo, precisava ir!
-
Disse-te algo mais?
-
Sim senhor, quando precisarmos é só chamar e ele virá auxiliar-nos!
Ricardo apertou-lhe a mão desejando protege-la
daquilo que não compreendia. Teria muito a refletir em sua extrema sensatez.
Retornou com Sara á moradia onde após alimentá-la levou-a a um aposento próximo
ao seu, onde passaria a dormir.
Em seu aposento sentou-se em sua escrivaninha
rústica, e pensativo colocou-se a fazer anotações em um pergaminho.
A noite invadia
Adredanha em grandiosidade.
A imensa lua surgia clara iluminando a escuridão. Infinitas
estrelas coloriam o céu negro aumentando-lhe a beleza. A folhagem sacudia-se
rebelde ao vento nas frondosas arvores.
"É hora de voltar!" Gabriel murmurou para
si mesmo. Estava oculto na cachoeira já tinha muitos dias, precisava retornar.
Aproximar-se-ia cuidadosamente da moradia e somente assim poderia observar o
que estava ocorrendo. Olhou a noite tranqüila ao seu redor, negro lhe era o
coração na ânsia de vingança.
Linia avistou
extasiada um imenso castelo. Estavam finalmente chegando. Sentia-se exausta
pela viagem, mas extremamente eufórica com sua nova vida sendo uma nobre.
Aproximaram-se das grandes muralhas e o Lorde veio auxiliá-la a sair de sua
carruagem. Linia deu-lhe a mão carinhosamente dizendo-lhe:
-
Como tudo é lindo senhor meu pai!
O lorde sentiu-se feliz com o entusiasmo da filha,
mas repentinamente sentiu-se temeroso com a presença de seu filho Arthur, que
olhava Linia atônito. Balbuciou:
-
Senhor meu pai, esta jovem é surpreendentemente parecida com minha irmã
Brigith! Como pode ser isto?
O jovem olhava Linia incessantemente analisando-a.
Sentia-se surpreso com a semelhança e a sua presença aflorara a enorme saudade
que sentia de Brigith. O Lorde cumprimentando-o com forte abraço pediu-lhe:
-
Entremos meu filho Arthur; temos muito a conversar!
Lorde Orlando pegou a mão de Linia conduzindo-a a
entrar no castelo; enquanto Arthur acompanhava-os ainda curioso com aquela
presença tão surpreendente. Os servos do castelo também a olhavam incógnitos.
Lana escutando o murmúrio aproximou-se do salão principal para ver o que ali
acontecia. Avistando aquela jovem que entrava ao lado do lorde Orlando e de
Arthur sentiu-se mal perdendo os sentidos. Lorde Orlando olhou uma das servas e
ordenou-lhe que acompanhasse sua filha Brigith até o seu aposento. Esta o olhou
perplexa, mas prontamente obedeceu-lhe.
Arthur não conseguiu compreender o que o seu pai
ordenara á serva; sentindo-se indignado acompanhou-o até á biblioteca. Lorde
Orlando tranqüilamente e com extrema satisfação contou-lhe como encontrara a
filha. Falou-lhe que após longo dialogo com esta, haviam entrado num acordo, e
que sua identidade passaria a ser a de sua filha Brigith. Explicou a Arthur,
que somente os servos tinham conhecimento do falecimento de sua irmã Brigith e
que ninguém na corte ou nos arredores da propriedade sabia de sua repentina
morte. Breve poderia negociaria um noivado e com este atrairia a si novas
propriedades e riqueza. Arthur sentia enorme repulsa na longa narração eufórica
de seu pai. Quando este terminou, levantou-se e exclamou sua completa
indignação.
-
Senhor meu pai, isto é um completo absurdo!
O lorde enfurecendo-se com a atitude intempestuosa
do filho afirmou decidido.
- A partir de hoje é minha filha e tua irmã Brigith
que aqui está queiras tu ou não!
O jovem não se intimidou mostrando-se arrogante.
-
Estás completamente louco senhor meu pai. Minha irmã Brigith morreu! Os
servos sabem disto!
-
Não ousará nenhum deles contrariar-me! É minha filha Brigith! É a tua
irmã Brigith! Não poderás tu, também contrariar-me!
Arthur extremamente nervoso e indignado; mas
completamente sem argumentos diante da absoluta autoridade de seu pai,
pediu-lhe licença para se retirar. O lorde consentiu prontamente, sentia que o
filho compreenderia a sua decisão. Quando este já saia o velho pai falou-lhe
ainda:
-
Gostarás dela Arthur... é inteligente e elegante...tem porte e
altivez... E digna de uma personalidade impressionante...
O filho Arthur nada mais lhe disse saindo apressado.
O sol já ia alto quando lorde Orlando reuniu os
servos sob o comando do capataz Philip, e comunicou-lhes em ordem expressa.
-
Trouxe minha filha Brigith de volta a esta propriedade; que nenhum de
vós ouse questionar ou dialogar sobre isto. Philip terá ordens expressas de
exterminar qualquer um de vós que se atreva a contrariar esta minha ordem.
Deverão tratar à senhorita Brigith com cordialidade e respeito.
Os servos humildemente também silenciaram sua enorme
perplexidade e indignação e sendo dispensados seguiram para as suas tarefas. O
lorde olhou Lana que ali também estava e ordenou-lhe:
-
Sempre fostes à ama de minha filha Brigith, ordeno-te que cumpras com
tuas tarefas!
Lana estremeceu com a ordem e com a extrema loucura
daquele seu senhor, mas não ousaria jamais contesta-lo; nenhum dos servos o
faria. Naquela propriedade tinham proteção, alimento e vida enquanto fossem
úteis e dóceis á nobreza. Encaminhou-se obedientemente ao aposento de Brigith.
Encontrou aquela jovem encostada no cortinado de renda. Com certeza observara e
ouvira o que o Lorde havia imposto a seus servos. Lana falou-lhe humildemente:
-
Boa tarde senhorita, meu nome é Lana e sou sua ama; em que posso
servir-lhe?
Linia olhou-a minuciosamente e com extrema
superioridade falou rude.
-
Deves tratar-me por Senhorita Brigith, não compreendestes meu pai!
Lana agora identificava a imensa diferença entre a
jovem que estava diante de si e a sua querida Brigith. Os traços eram-lhes
idênticos, mas o caráter era completamente divergente. O seu olhar era frio e
cruel. Lana pediu perdão a Deus em pensamento e balbuciou:
-
Perdoai-me senhorita Brigith; posso ajudá-la?
Linia olhou-a sentindo-se ainda insatisfeita com a
ama.
-
Desejo tomar um banho já; estou coberta de poeira!
Lana preparava-se para sair a providenciar a água
quente dizendo-lhe:
-
Com sua licença senhorita, providenciarei já!
Linia olhou-a enfurecida:
-
Chamo-me Brigith!
Lana novamente olhou-a servil e humilde.
-
Perdoai-me senhorita Brigith; concedei que me retire para lhe preparar
o banho.
Linia consentiu em olhar frívolo e colocou-se a
analisar o aposento e a riqueza dos adornos. Vasculhou o armário frondoso e ali
encontrou inúmeros vestidos e vestes em tecidos finos e lindas sedas.
Estava
eufórica com tantas belezas.
Arthur observara do imenso salão as ordens de seu
pai, e sentia-se temeroso com a sua extrema loucura em desejar substituir irmã
tão querida que falecera.
Se houvesse trazido à bastarda e assumi-la como
filha, estaria no seu inteiro direito de pai, mas repo-la na posição de
outrem... Só poderia estar louco.
E quem seria esta que aceitara tamanho absurdo, qual
seria a identidade que tanto desejava ocultar.
Arthur sabia que precisaria fazer algo, mas o que???
Resolveu sair e cavalgar para tranqüilizar-se um pouco.
Estava ciente que na ceia se encontrariam os três e
teria que se comportar.
Linia observou quando Arthur afastou-se do castelo
num cavalo branco subindo as colinas. Observava ainda como aquela paisagem era
diferente de Adredanha; imensa colina adornando o horizonte de verde intenso
que se encontrava com um céu extremamente azul.
Um lindo rio passeava tranqüilo defronte ao castelo.
Sentia-se bem e extremamente feliz.
À tarde para Linia passou breve no castelo de Lorde
Orlando. Experimentou os inúmeros vestidos de Brigith desfilando-os um a um e
pedindo a paciente Lana para fazer um e outro acerto.
Sentia-se extasiada com a sua nova vida de nobreza.
Um requintado chá lhe fora servido no aposento e sentia-se extremamente
preparada para a ceia onde conheceria o irmão Arthur.
Achou-o demasiadamente esnobe, mas incrivelmente
bonito forte e elegante; estava ciente de que se entenderiam bem.
Não tardou muito a um serviçal vir chamá-la a pedido
de Lorde Orlando.
Linia vagarosamente preparou-se com extremo requinte
e astúcia. Lana a penteara com esmero e os longos cabelos cacheados pareciam
luzir de tanto brilho.
Um bonito vestido de Brigith em seda alva era
realçado com enorme fita azulada.
Olhou-se no espelho maravilhada, lembrando-se
contrariada das vestes sutis da serviçal que era e que eram bem inferiores ás
vestes de sua ama.
Olhou-a com desprezo e saiu do aposento descendo a
imensa escadaria.
Encontrou o Lorde no imenso salão próximo á lareira,
mas Arthur ainda não se encontrava ali.
O Lorde vendo-a levantou-se patético em felicidade.
-
Brigith, como estás linda minha filha!
Linia fez breve meneio de humildade reverenciando-o
e o Lorde constrangido com sua atitude disse:
-
Não deves fazer isto Brigith, cumprimentai-me somente com um sorriso;
devo eu como teu pai pegar-te a mão e encaminhar-te para que sentes...
Linia sentou-se numa confortável poltrona de fronte
a grande arpa. Olhou-a com admiração e o Lorde percebendo-o explicou-lhe:
-
Deveras aprender a tocá-la. No castelo temos alguns músicos que te
ensinarão.
Linia sorriu agradecendo.
Arthur entrou no salão com muita seriedade e com o
andar pesado sobre a nobre madeira que forrava o piso, em tons divinos e
esmeradamente encerados.
-
Boa noite senhor meu pai!
Cumprimentou Arthur encaminhando-se para sentar-se
próximo ao Lorde. Este lhe indagou perplexo:
-
Não cumprimentarás tua irmã, Arthur?
Arthur em tom de arrogância olhou-a e depois olhou
seu pai perguntando-lhe:
-
Senhor meu pai, perdoai-me a indelicadeza, mas como poderei fazê-lo se
nem mesmo sei seu nome?
O Lorde o olhou enfurecido, levantou-se e
aproximando-se de Arthur advertiu-o:
-
Não te atrevas rapaz a criar-me problemas, deixai de ser insolente e
cumprimentai agora tua irmã!
Arthur levantou-se e caminhou até Linia.
Ironicamente cumprimentou-a:
-
Boa noite senhorita; poderias dizer-me qual o teu nome?
Linia olhou-o corando. Lorde Orlando definitivamente
se enfurecera:
-
Arthur ordeno-te que subas agora para os teu aposento e de lá não saias.
Arthur indignado desafiou-o:
-
Trocas-me por uma bastarda senhor meu pai? Denegristes a memória de
minha querida irmã Brigith e de minha doce mãe Joane! Porque me expulsais de
teu convívio? Meramente porque indago como se chama?
O Lorde nervoso com a audácia do filho que o
desafiava estava prestes a tomar uma atitude mais drástica quando Arthur por si
mesmo retirou-se apressado para o seu aposento. Lorde Orlando desculpou-se
carinhosamente:
-
Lamento minha filha Brigith esta situação demasiadamente constrangedora...
Entenderei-me com Arthur posteriormente. Vamos cear?
Linia sentia-se vitoriosa e feliz. Aparentava
propositadamente ao Lorde doçura, humildade e meiguice. Pegou na mão do Lorde e
acompanhou-o na ceia.
Na propriedade de Adredanha a rotina voltara à tranqüilidade. Luís o
capataz se restabelecera por completo, retornando a lida.
Ricardo pegou a pequena Sara que aprendia a ler e a
escrever em seu aposento e levou-a para cear consigo. Freqüentemente percebia-a
ausente questionava-se se ela estaria conversando com seu pai; o pensamento
sempre lhe fazia sentir fortes arrepios de incompreensão. Desde o acontecimento
na praia nunca mais lhe indagara sobre isto ainda que enorme vontade tivesse de
fazê-lo. Tão logo a mãe partira Ricardo a tratara como uma filha; cuidando de
seu bem estar e de sua doutrinação. Era-lhe o amigo e o protetor. Em
pouquíssimo tempo havia se afeiçoado em demasia a pequena Sara e estava ciente
de que faria qualquer coisa para protegê-la. Era-lhe a filha que nunca havia
tido. Após a ceia, Ricardo a acompanhou por breve passeio na noite, nos
arredores da moradia. Nesses passeios o medico ensinava-lhe as teorias das
estrelas e dos planetas de que era conhecedor; falava-lhe das transformações
climáticas; nunca parava de lhe ensinar.
Derrepente Sara interrompeu-lhe dizendo baixo:
-
Ele nos observa!
Ricardo olhou-a intrigado, indagando-lhe:
-
Quem nos observa Sara?
-
Meu pai me diz que ele nos observa!
Ricardo sentia enorme vontade de indagá-la sobre
este assunto tão incompreensível á sua mente, mas naquele momento o assustava:
-
Quem nos observa?
Sara cochichou baixinho para que somente ele
ouvisse:
-
Gabriel está aqui e nos observa!
O medico olhou rapidamente ao redor; haviam se
afastado um pouco da vila dos servos, mas ainda podia avistar a nobre moradia
de Adredanha. Ricardo abaixou-se e indagou-lhe baixo:
-
Onde está?
Sara fez breve silencio e então balbuciou:
-
Olha na direção do lago, perceberás que próximo á grande palmeira, a
vegetação se sacode ocasionalmente; assim disse meu pai Job.
Ricardo cada vez mais intrigado levantou-se o
observou na direção indicada. Logo localizou uma grande palmeira e sob esta
ocasionalmente uma moita se sacudia sutilmente. Pegou na mão de Sara
dizendo-lhe:
-
Vamos voltar querida, precisamos repousar!
Sara o acompanhou sem fazer-lhe perguntas, quando
chegaram ao aposento de Ricardo, este lhe disse:
-
Entra um pouco para conversarmos Sara!
Sara entrou e sentou-se sem cerimonias na cama de
seu tutor. O medico puxou uma cadeira que lhe estava próxima e também se
sentou.
-
Preciso compreender o que acontece contigo; conta-me tudo Sara!
Sara contou-lhe que ás vezes seu pai vinha falar com
ela, e lhe dar conselhos em como se comportar. Outras vezes a chamava a atenção
de quanto o medico estava sendo bom para consigo e para respeitá-lo e
auxilia-lo. Ricardo interrompeu-a:
-
Job está aqui agora?
Sara afirmou imediatamente que sim, sorrindo-lhe com
naturalidade.
-
Pergunta a teu pai, o que Gabriel deseja?
Sara olhou a escrivaninha um pouco afastada e depois
olhou o medico um pouco temerosa:
-
Ele disse "Vingança"!
Ricardo olhou-a sobressaltado; mas tentou não
transparecer os temores que sentia:
-
Pergunta-lhe o que devo fazer?
Novamente Sara focou a escrivaninha e disse-lhe:
-
Mandou a gente fugir, ele quer te matar!
Sara parecia não inquietar-se com o dialogo.
-
Você está cansada Sara?
-
Não senhor Ricardo, o senhor gostaria de falar mais com meu pai?
Ricardo tinha inúmeras indagações a fazer, mas
sentia-se constrangido com a sua curiosidade. Sara então lhe disse:
-
Meu pai diz que te é imensamente grato por tudo o que o senhor faz por
mim, e deseja nos proteger... mas aonde está só pode falar comigo e mais nada.
Pede que o senhor acredite! Diz que Gabriel vigia a moradia já tem muitos dias;
está armado de arco e flechas; pede que você alerte Luís.
Ricardo observava-a atencioso e sentia-se confuso.
Como falaria a Luís que Gabriel estava vivo e prestes a um ataque. Sara
novamente interrompeu-lhe os pensamentos, dizendo-lhe:
-
Pede que o senhor, de manhã bem cedo vá com o capataz Luís, aquele
local lá fora, poderá mostrar-lhe evidencias.
Ricardo concordou ainda que perplexo com o que
acontecia e então pediu a Sara que fosse dormir; precisaria refletir e ansiava
que o dia não tardasse a clarear. Ricardo levantou-se cedo aguçado pela
curiosidade e pelo receio na veracidade das palavras de sua enteada Sara.
Caminhou á copa a fim de procurar o capataz Luís e
não tardou o encontrou pronto a convocar os servos para a lida. Aproximou-se
sereno:
-
Bom dia Luís!
Luís olhou-o satisfeito, havia o medico Ricardo
conquistado inúmeros méritos em salvar-lhe a vida. A enorme cicatriz na nuca
era-lhe o testemunho todas as manhãs.
-
Como vai senhor, Ricardo?
Ricardo olhou-o apreensivo, sem saber como expor o
que haveria a ser feito.
-
Preciso de sua colaboração Luís!
Luís olhou-o prestativo, colocando-se á inteira
disposição. Ricardo pediu que Luís o acompanhasse. Caminharam na direção da
grande palmeira, onde o medico Ricardo havia visto a vegetação sacudindo-se
irregularmente. Lá chegando colocou-se a rastear sinais no solo.
-
O que procurais senhor Ricardo?
Indagou-lhe Luís intrigado. Ricardo respondeu-lhe
distraidamente continuando a tarefa:
-
Auxiliai-me a procurar o rastro!
Luís olhou-o confuso.
-
Rastro de que senhor Ricardo, não compreendo. Explicai-me!
Ricardo levantou-se e balbuciou:
-
Confias em mim?
O capataz olhou-o fixamente afirmando-lhe:
-
Sem qualquer duvida senhor!
Ricardo permaneceu balbuciando em tom de seriedade:
-
Não me indagues nada e crê no que te digo, sei que Gabriel está vivo e
os guerreiros ocultaram isto de lorde Orlando para não perderem os méritos;
freqüentemente ronda a moradia observando-nos e está armado de arco e
flechas... ontem esteve aqui e percebi-lhe o vulto sob esta vegetação...deves
auxiliar-me a procurar vestígios do que te afirmo!
Prontamente o capataz, atônito com tudo o que o
medico lhe dissera, colocou-se também a rastear os vestígios. Não tardaram a
constatar pegadas que provavam que alguém ali havia estado á noite. Ricardo
novamente lhe fez um sinal para que o acompanhasse e rumaram para a moradia. Lá
os servos estavam prontos, aguardando para irem para a lida. Luís os dispensou
pedindo a alguns auxiliares que os acompanhassem; que iria posteriormente.
Olhou Ricardo então e disse-lhe:
-
Se tudo o que me dizes é verdade, e não tenho como contesta-lo, porque
creio em sua seriedade; porque Gabriel não fugiu para a aldeia mais próxima...
Que deseja aqui?
O medico olhou-o pedindo que se sentasse na escadaria
da moradia e contou-lhe tudo, desde o ataque a Henri II até a morte de Job e a
fuga de Linia em busca de ambição. Luís estava aparentemente perplexo com
tantos acontecimentos terríveis provenientes de uma única pessoa. Compreendia
que o lorde não ousara ir contra as leis morais, matando um consaguineo, ainda
que este houvesse exterminado quase toda a sua família. Mas não conseguia
compreender porque o deixara livre durante tanto tempo. Havia suspeitado pelo
semblante do lorde que Gabriel lhe criara inúmeros problemas e por isto o
disciplinava sem misericórdia na lida. Porem se soubesse de tudo isto antes,
com certeza não o teria deixado vivo. Ricardo continuou interrompendo-lhe os
pensamentos:
-
Não fugiu porque anseia vingança pela morte de sua amada... creio que
alimenta ódio contra Philip, o capataz do castelo que o expulsou da
propriedade; contra mim e Job que alertamos ao lorde sobre os acontecimentos;
contra você Luís porque o castigastes e o fizestes sofrer; contra o lorde que o
privou da nobreza tratando-o como um mero servo...
Ricardo deu uma pausa e estremeceu:
-
...se puder nos matará a todos!
O silencio se fez repentinamente e ambos
colocaram-se a refletir em tudo o que haviam conversado, Ricardo sentia certo
temor em estar se precipitando sobre a conversa com Sara; mas concluiu que
seria melhor prevenir-se.
Derrepente Luís olhou-o dizendo-lhe serio:
-
Tentou tirar-me a vida uma vez; não o fará novamente! Juntarei cem
servos de minha inteira confiança e vasculharei cada pedacinho desta
propriedade... se aqui estiver com certeza digo-lhe o encontrarei; o farei pela
manhã.
Ricardo surpreendentemente sentiu-se seguro e
protegido. O capataz então se desculpando afastou-se lhe dizendo que tinha
inúmeras providencias a tomar. O medico também se despediu agradecido pela
confiança e foi procurar Sara.
No castelo o
lorde despertara nervoso aquela manhã, após a conversa que tivera com seu filho
na noite anterior.
Haviam discutido e Arthur não concordara com as
atitudes de seu pai. Pedira-lhe que o autorizasse a viajar á corte. Lorde
Orlando não desejando incidentes maiores com ele, havia permitido a viagem do
filho, em discussão aflorada. Mas agora se sentia nervoso e infeliz com a
viagem do filho que tanto o auxiliava na propriedade.
A idade já era sentida no corpo e o cansaço
apresentava-se em sua fisionomia. Estava certo de que precisaria providenciar
um nobre rico para desposar a sua filha, agora Brigith.
Colocou-se a refletir a qual de seus amigos poderia
propor o matrimonio.
Repentinamente lembrou-se de um Lorde que possuía
três filhos em idade de assumir compromisso; pegou um pergaminho e escreveu-lhe
o seu interesse em unir os seus títulos aos deles. Chamou um mensageiro e
selando a mensagem em lacre vermelho, entregou-lhe dizendo-lhe o destino.
Arthur quando
o sol já alto ia à propriedade, despediu-se friamente de seu pai e montou em
seu cavalo. O acompanhariam na viagem quatro guerreiros.
Arthur estava decidido a ir para a propriedade de
Adredanha e não para a corte como dissera a seu pai.
Desejava ardentemente conhecer o passado da
impostora que ousara assumir a identidade de sua irmã Brigith e de
descobrir-lhe algum segredo que pudesse impedir os devaneios do velho Lorde
Faria a viagem num trote apressado e com pequenas
pausas. Em três ou quatro dias lá estaria pensou confiante olhando firmemente o
caminho pelo qual prosseguia.
Linia visualizava tudo da janela de seu aposento;
sentia-se feliz com a partida de seu irmão que desejava expo-la sempre ao
ridículo. Teria tempo a conquistar com excesso de mimos, a predileção de seu
pai. Lana entrou no aposento reverenciando-a em humildade:
-
Senhorita Brigith, o senhor Lorde deseja vê-la!
Linia sorriu satisfeita... Teria o Lorde só para si.
Os dias passaram-se. Linia já entoava lindas
melodias nas cordas delicadas da harpa e o Lorde sentia-se imensamente
satisfeito com sua dedicação. Também tinha aulas de equitação e dança. O Lorde
todos os dias lhe ensinava etiqueta.
Já agia e se comportava elegantemente como uma
nobre! O aprendizado lhe era imensamente prazeroso.
O mensageiro
entrou no salão, onde estavam repousando em tarde demasiadamente quente,
trazendo uma mensagem ao lorde. O lorde prontamente dispensou-o e após romper o
lacre do pergaminho leu-o.
Levantou-se e falou eufórico a Linia que o observava
curiosa.
-
Querida filha Brigith, devemos felicitar-nos!
-
Qual o motivo de tanta alegria
senhor meu pai?
-
O conde aceitou o compromisso de matrimonio com um de seus filhos; breve
haverá a festa de noivado, oficializando o seu enlace com lorde Pierre!
Linia mostrou-se enormemente apreensiva; lorde
Orlando percebendo-o aproximou-se sentando próximo a ela e tentou
tranqüilizai-la.
-
Nada temas querida Brigith; é uma das maiores fortunas da corte; e o
noivado unirá nossos títulos e consequentemente nosso poder será bem maior.
Deves sentir-te feliz!
Linia, no entanto mantinha-se silenciosa. Temia que
aquele lorde em matrimonio percebesse que fora enganado. O lorde pareceu lhe
compreender a aflição falando-lhe:
-
És inteligente demais Brigith; poderás facilmente ludibriar quem
desejes; saberás como agir!
Linia compreendeu imediatamente no que o seu pai a
instruía e sentiu-se mais calma.
-
Felicito-me contigo senhor meu pai... breve serei a esposa de Lorde
Pierre!
Arthur chegou á
propriedade de Adredanha quando já anoitecera. O medico Ricardo surpreendeu-se
ao vê-lo e aproximou-se prestativo:
-
Senhor Arthur, fez uma boa viagem?
Arthur olhou-o expressando imenso cansaço. Entrou na
moradia sem as cerimonias habituais. Sentou-se prazerosamente numa poltrona
macia e falou suspirando alivio.
-
Ricardo pensei que viajaria somente quatro dias, mas a viagem se tornou
imensamente exaustiva em longos e intermináveis sete dias a galope; esta
propriedade é demasiadamente longe de nosso castelo. Parece que aqui não venho
á muito tempo; mas não faz muito passei longa temporada aqui com o senhor meu
pai.
Deu uma breve pausa lembrando-se do falecimento de
sua mãe de seus irmão quando estava ali em Adredanha com seu pai, e melancólico
prosseguiu.
-
Tenho tantas lembranças boas que vivi nesta propriedade, quando ainda
era um menino e divertia-me com Anderson meu irmão... mas a maturidade faz-me
observar detalhes que antes não percebia!
Ricardo, que permanecia de pé, disse-lhe
gentilmente:
-
O senhor deve estar com muita fome; deseja que lhe seja servida a
refeição agora?
-
Não Ricardo, tomarei um bom banho que me renovará o animo! Depois me
alimentarei!
O medico meneou a cabeça humildemente em
entendimento, e o jovem pediu-lhe:
-
Fique aqui e me aguarde Ricardo; faremos a ceia juntos; és meu
convidado.
Arthur subiu apressado para o seu aposento para banhar-se. Ricardo encaminhou-se á copa avisando a
chegada do nobre e pedindo providencias para a sua refeição. Depois procurou o
capataz Luís, encontrando-o nos fundos da moradia onde existia um enorme pátio.
Falou-lhe com extrema seriedade:
-
Soubestes que o filho do lorde chegou á propriedade?
-
Sim senhor Ricardo, encontrei-me com seus guerreiros.
Ricardo olhou-o apresentando ainda maior seriedade
dizendo-lhe apreensivo:
-
Como foram as buscas hoje?
Luís mostrava-se aparentemente desapontado. Meneou a
cabeça em desapontada negativa.
-
Estivemos novamente nas proximidades da cachoeira, mas não o
encontramos! Surpreendo-me que nestes seis de procura incessante, não tenhamos
conseguido visualizar qualquer vestígio do local onde se oculta; nenhuma
fogueira; nenhum leito improvisado...
Luís parou repentinamente e indagou-lhe:
-
Como estão os servos?
Ricardo olhou-o entristecido:
-
Recuperam-se dos ferimentos, porem estou certo de que perderemos dois
bons companheiros; tudo que podia fiz por eles, agora somente Deus poderá
salva-los!
O capataz com o semblante melancólico sentindo-se
demasiadamente impotente sussurrou:
-
Como pode um só homem causar tanta desgraça e tanta dor!
Dando um suspiro de revolta olhou Ricardo
falando-lhe.
-
Precisamos informar ao filho do lorde o que ocorre aqui!
Ricardo pediu ao capataz Luís que o deixasse
informar-lhe, pois este o havia convidado para a ceia, e seria excelente
oportunidade de contar-lhe tudo o que ali acontecia. Luís sentindo-se aliviado
prontamente consentiu.
O médico aguardou pacientemente que Arthur descesse
ao salão de refeições e quando este o fez ambos se alimentaram silenciosamente.
Finda a ceia, Arthur pediu-lhe que o acompanhasse até á biblioteca, onde
poderiam conversar com maior privacidade. O banho parecia o ter rejuvenescido.
O jovem altivo não mais apresentava o semblante exausto. A beleza e a
vivacidade realçavam-lhe os traços tão peculiares que o assemelhavam a sua mãe
Joane.
Após sentarem-se comodamente Arthur falou-lhe:
-
Confio amplamente em
ti Ricardo e preciso de teu auxilio!
As palavras lhe eram humildes e dóceis e surgiam
como uma suplica e não como as costumeiras ordens superiormente rudes de seu
pai. Arthur prosseguiu:
-
Sinto que a idade afeta a razão do senhor meu pai; praticamente
expulsou-me do castelo por causa de uma senhorita que diz ser sua filha e é
incrivelmente parecida com a minha doce irmã Brigith...
Suspirou imensamente entristecido e continuou
falando modestamente.
-
E o pior Ricardo, é que anulou completamente a identidade desta e a
assumiu diante de todos no castelo, como Brigith. Advertiu os servos que nunca
o contestassem se não lhes seria a morte; vê na impostora a filha que todos
sabemos que morreu... Sinto-me exausto, mas vim procurando respostas para este
enorme absurdo, e preciso as ter hoje ainda, se possível for!
Arthur deixou-se afundar na poltrona com uma
expressão imensamente suplicante. Ricardo olhou-o com seriedade e encorajou-se
a dizer-lhe.
-
Tenho inúmeros acontecimentos a narrar-te; sei que és jovem demais e
não possuis a experiência tão necessária, a compreendê-los sensatamente com a
frieza de quem já muito viveu; mas sinto que preciso te informar o muito que
desconheces senhor Arthur, ainda que muito te emociones com tudo!
O nobre ergueu-se da poltrona e caminhou decidido em
sua direção.
-
Contai-me Ricardo, eu lhe peço!
Arthur não conseguiu conter a emoção; lagrimas
febris lhe desceram as faces á medida que o medico lhe contava pausadamente
tudo o que ocorrera no castelo e tudo o que acontecera em Adredanha. A cruel
narrativa dos assassinatos de seus irmãos lhe era extremamente dolorosa.
Ricardo prosseguia sem pausas temendo compadecer-se daquele jovem e excluir-lhe
a verdade, que ainda que o magoasse lhe era extremamente importante. Quando
este terminou a longa narrativa, Arthur encontrava-se imobilizado por
sentimentos de muita dor.
-
Infelizmente Senhor Arthur, ainda não acabei de contar tudo...
descobrimos que os guerreiros de teu pai o ludibriaram em mentira
inconseqüente; Gabriel está vivo! Luís o capataz desta propriedade, reuniu cem
homens para fazer continua busca em toda a propriedade, mas nestes
intermináveis dias, ainda que se dividam em grupos e rumem por toda a extensão
da densa vegetação, até os limites no abismo, não o encontraram! Com certeza o
esconderijo lhe é perfeitamente seguro e neste permanece oculto durante o dia;
no entanto quando anoitece aparece para nos atormentar...
Arthur, contendo-se na emoção, interrompeu-o:
-
Como sabes que está vivo?
-
Feriu sete servos da propriedade; sempre o faz quando anoitece. As
flechas provêm de algum lugar da densa vegetação e os atingem quando estes
estão em repouso nas proximidades de seus lares... Gabriel tem nos provoca
incessantemente com seus ataques covardes e repentinos. Os servos estão
amedrontados; ocultam-se nas pequenas casinhas e só têm saído quando o dia
clareia. Quando vi o senhor se aproximando da moradia ao anoitecer, temi por
sua segurança, mas creio que não o atacou porque deseja saber o que veio fazer
aqui... com certeza observa-nos!
-
Onde se abriga?
Indagou-lhe atônito Arthur, aparentemente já refeito
das emoções dolorosas.
-
Somente lhe tenho uma resposta senhor, talvez em alguma gruta
imperceptível aos olhos dos servos que o rasteiam... os rochedos nesta
propriedade são inúmeros próximo ao abismo, como vasculhar cada buraco?
Arthur andava incessantemente de um lado para o
outro na biblioteca. Aproximou-se da grande janela dizendo:
-
Observa-nos agora?
O medico prontamente respondeu-lhe:
-
Com certeza senhor Arthur!
Arthur visualizou a noite escura e disse
sarcasticamente em tom de autoridade:
-
Fogo... muito fogo! Não existem plantações deste lado da propriedade,
somente densa vegetação até á grande cachoeira e posterior lago e abismo; a
vegetação está extremamente seca pela falta de chuvas e o vento sopra
favoravelmente na direção desta colina... queimaremos tudo! Não terá mais onde
se ocultar para nos atacar!
O medico sentia-se surpreso com a extrema astucia de
Arthur.
-
Venha comigo Ricardo, preciso falar imediatamente com o capataz Luís.
Ambos caminharam até os fundos do castelo, onde Luís
aguardava que o medico o procurasse após a conversa com o filho do lorde.
Arthur falou-lhe com a autoridade necessária a um bom coordenador:
-
Luís, providenciais imediatamente cinqüenta tochas e cinqüenta servos!
Ainda que não compreendesse as intenções do jovem
nobre, prontamente o capataz lhe saiu apressado a atender-lhe a ordem. A noite
já ia demasiadamente alta quando as tochas foram acesas; enorme clarão se faz
na noite escura. Os servos sob a orientação de Arthur se dispersaram ao longo
da vegetação, que fazia fronteira com a vila dos servos e findava no abismo
após a grande cachoeira e numa única ordem o fogo foi ateado á mata de
Adredanha.
Facilmente o fogo se propagou, em linha horizontal
contrária á direção do mar, subindo a colina; rumo á cachoeira!
Gabriel
preparava-se para repousar em sua gruta, tão bem resguardada sob as fortes
águas da imponente cachoeira. Acostumara-se a fazer as longas caminhadas até á
moradia para observar; e ainda que fossem longas horas em caminho árduo não
mais se sentia exausto; era-lhe mero exercício e os músculos de seu corpo
haviam se acostumado também á tarefa. Reconhecera prontamente o filho do Lorde
Orlando quando este chegara á propriedade e sentia-se intrigado com o que
Arthur ali viera fazer. Conseguira ainda ver o medico Ricardo recepcionando-o e
visualizara através do imenso vitral da biblioteca, o muito que conversavam.
Decidira em função da longa conversa que não podia ouvir retornar para repousar
mais cedo. Estava certo de que lorde Orlando partira para o seu castelo já
tinha longos dias, pois nunca mais o vira na propriedade. Escondido na
vegetação ouvira os rumores dos servos a respeito da súbita morte de Job.
Participava continuamente, ainda que oculto da vida daquela propriedade.
As sete flechas que atirara nos servos eram um mero
alerta para não o julgassem ingênuo, e para que ficassem cientes de que não o
pegariam com tanta facilidade como estavam pensando, naquelas incessantes
buscas que sempre visualizava nas proximidades da cachoeira.
Esteve certa vez prestes a alvejar o capataz Luís,
quando este se aproximou da cachoeira, mas não o fez por temer seu esconderijo
ser descoberto; se frustava em não o ter matado no dia da fuga, mal lhe fizera!
Esperava momento propicio também a alvejar o médico
Ricardo que o traíra em conclusões precipitadas, mas não houvera oportunidade a
fazê-lo.
Depois que feriu um dos serviçais, todos tomaram
cautela evitando sair das moradias ao anoitecer ou encontrando-se nos fundos
destas onde não poderia visualizar. O que não o impossibilitara de ferir os
outros seis servo.
Não faltariam oportunidades a concretizar os seus
anseios de vingança. E assim que o conseguisse rumaria para o castelo, a fim de
se vingar do velho lorde e de Philip seu capataz asqueroso.
Repentinamente lembrou-se de Arthur, se o
exterminasse também, poderia assumir a propriedade que lhe era de direito, como
nobre que era irmão de Joane; pensaria nisto pela manha; já era demasiadamente
tarde e o cansaço se apoderava de seu corpo.
Gabriel deitou-se a dormir, quando escutou um imenso
barulho na mata. Aproximou-se vagarosamente da fenda e assustou-se em demasia
com o que visualizou.
Um imenso clarão cobria a propriedade de Adredanha,
fazendo-lhe dia. O forte cheiro de fumaça e de madeira queimando emanava em sua
direção. Não se sentiu temeroso por se encontrar em segurança, mas não tardou o
cenário que visualizava era medonho.
Um mar de
fogo caminhava em sua direção. O calor era insuportável ainda que a água da
cachoeira refrescasse o ambiente; e evitava que a fumaça ali entrasse. Inúmeros
animais refugiavam-se nas pedras, outros, no entanto ali onde estava também
procuravam abrigo e Gabriel de imediato pegou o facão para matar algumas cobras
que o ameaçavam a segurança.
O imenso incêndio durou o resto da noite e pela
manha Gabriel ainda poderia verificar alguns focos de chamas ardentes que
queimavam a madeira robusta de árvores anteriormente frondosas.
O cenário que se descortinava era de uma paisagem
morta em negro e cinza.
Poderia ver agora ao longe a vila dos serviçais e a
moradia de Adredanha. E ainda que bem distante estivesse, estava ciente que a
gruta não lhe era mais local apropriado a ficar.
Gabriel recolheu o arco e as flechas e saiu decidido
a alcançar o castelo de Lorde Orlando.
Arthur acordara cedo
disposto a procurar Gabriel. Após terminar
a refeição matinal chamou Luís e pediu-lhe que o acompanhasse.
-
Posso ir também senhor Arthur?
Indagou o médico Ricardo aproximando-se. Arthur
cumprimento-o autorizando-o a fazê-lo.
Os três visualizaram o resultado do incêndio com
assombro. A devastação havia sido terrível; poucas árvores haviam permanecido em pé. Agora da moradia
poderiam avistar a imponente cachoeira á distancia sem os obstáculos que antes
a ocultava.
Arthur falou ao capataz:
-
Mande alguns serviçais limpar toda a área queimada; depois deverão
ará-la e planta-la... Que não se deixe mais que a mata cresça!
Luís concordou e imediatamente foi dispensar os
servos para a lida e escolher uns para esta tarefa.
Novamente o capataz retornou á companhia de Arthur e
Ricardo. Os três caminharam rumo á cachoeira; chegando lá Arthur disse-lhes:
-
Conheço aqui um lugar, onde costumava brincar que poucos conhecem... Se
não estiver errado o encontraremos aqui!
Luís imediatamente pegou o facão e caminhou na
frente de Arthur.
-
Perdoai-me a ousadia senhor Arthur, mas se aqui estiver poderá; irei à
frente se me indicar o caminho!
Arthur apontou-lhe a fenda escura sob as águas,
dizendo:
-
Caminha-se com cautela por estes rochedos até alcançar a fenda...
Molhamos-nos bastante, mas se surpreenderão com o imenso salão que ali existe
oculto!
Ricardo cada vez mais se surpreendia com a astúcia
do nobre Arthur. Caminharam facilmente os rochedos alcançando a fenda e
surpreendentemente ali estava ele, um imenso salão de pedra.. Observaram
assombrados, que Gabriel sempre estivera ali. Um bom leito de palha trabalhada;
a fogueira ainda quente; pedaços de madeira e indícios de sua fabricação de
flechas. Arthur concluiu rapidamente:
-
Foi embora!
-
Como o sabes senhor Arthur?
-
Simples Ricardo carregou tudo consigo! Olhe através da fenda, não teria
mais onde ocultar-se. Podemos observar a moradia daqui, igualmente poderia ser
visto de lá! Pergunto-te agora eu, pelo muito que o conheces, para onde irá?
Ricardo pensou um pouco e após alguns instantes
falou-lhe:
-
Se Gabriel deseja vingar-se e não pôde concretizar sua vingança aqui,
com certeza irá para o castelo!
O capataz Luís olhou-o interrompendo-o:
-
Mas como chegará lá se Gabriel não possui meios ou recursos para isto?
Arthur respondeu-lhe:
-
Começo a compreender Gabriel e respondo-te que não vacilará em matar
para conseguir os meios e ainda que não os conseguisse asseguro-te Luís, que
caminhando determinado, com a força que dizem possuir, em trinta dias lá
chegaria!
Os três entreolharam-se assombrados. Voltaram á
moradia e uma menina correu feliz em direção ao médico Ricardo, abraçando-o
afetuosamente. Arthur curioso olhou-a fixamente indagando:
-
Ricardo, esta menina é Sara?
Ricardo respondeu-lhe entristecido:
-
Sim senhor Arthur, é a linda filha de Linia!
O nobre abaixou-se para cumprimentá-la:
-
És muito bonita Sara! Sabes que sou teu tio, e tu és minha sobrinha?
A menina corou meneando levemente em negativa.
-
Pois afirmo que sou teu tio e eu também te protegerei
Sara olhou Ricardo e sorrindo deu-lhe a mão; depois
olhou Arthur e também lhe estendeu a mão. Arthur a pegou carinhosamente e os
três de mãos dadas entraram na moradia.
O médico pediu a Sara que fosse para o seu aposento
estudar e acompanhou o nobre Arthur até a biblioteca. Arthur disse-lhe
determinado:
-
Viajaremos para o castelo pela manha Ricardo!
Ricardo olhou-o apreensivo.
-
Com teu regresso sabes que irás afrontar teu pai, que pensa teres ido
para a corte. Sabes que sara precisa ficar distante de Linia!
Arthur explicou-se:
- Terei onde oculta-la. O senhor meu pai não saberá
de sua presença!
-
E quanto a mim, como explicarás minha presença?
Arthur pegou a imensa espada que portava na cintura
e disse-lhe:
-
Simples meu bom Ricardo, cuidarás de mim!
Dizendo isto, o jovem nobre, num gesto de coragem,
fez profundo corte no seu braço esquerdo.
O médico Ricardo perplexo com sua coragem e
valentia, perguntou-lhe:
-
Senhor Arthur porque fizestes isto? Porque te feristes?
O jovem sorriu e falou-lhe com naturalidade;
-
Agora, preciso de um bom médico que me acompanhe. Realmente o senhor
meu pensa que viajei para a corte; direi-lhe que me feri no caminho, num ataque
de salteadores e vim a Adredanha para que me auxiliasses.
Ricardo assustado com o imenso sangramento pediu-lhe
licença para que se ausentasse a fim de procurar um torniquete e pegar algumas
ataduras. Arthur consentiu e o médico saiu apressado. Logo retornou com o
material e Arthur prosseguiu, enquanto o médico o auxiliava no ferimento.
-
Direi ao senhor meu pai, que quando fui atacado, estava próximo á
aldeia de Corville, assim não achará estranho que tenha rumado para cá...
O médico interrompeu-o:
-
Porque desejas que eu vá contigo senhor Arthur/
Arthur o fitou amigavelmente:
-
Minha nobre mãe confiou em ti meu bom Ricardo; meu pai também assim o
fez; porque eu não o faria? Serás meu confidente, meu amigo e meu mentor.
Prometo-te que minha espada te protegerá, assim como protegerá também minha
sobrinha Sara; que por sua candura e meiguice, percebi que nada tem dos olhos
vis de sua mãe Linia.
O médico Ricardo, terminara de enfaixar o braço
daquele nobre que ainda era um menino, mas que agia como um homem.
-
Estás de acordo Ricardo?
O médico olhou-o com admiração e falou-lhe:
-
Senhor lhe acompanharei á viagem ao castelo; mas como ficarão os servos
feridos sem o meu auxilio médico?
-
Ricardo, pelo que me dissestes tudo o que podias fazer por eles já o
fizestes!
O médico concordou pedindo-lhe licença para se
retirar a tomar algumas providencias.
Arthur sozinho olhou a sua espada, que ainda
permanecia em sua mão direita e erguendo-a com segurança murmurou firmemente:
-
Honrarei o nome de minha mãe Joane; o nome de meu irmão Anderson e o
nome de minha doce irmã Brigith.
Baixou novamente a espada, e após limpa-la
guardou-a. Sentou-se então para pensar
Em tudo o que o médico Ricardo lhe contara, e não
tivera tempo para refletir.
Gabriel
caminhou paralelamente ao abismo por longos dias, até que avistou uma grande
aldeia. A túnica que vestia estava extremamente suja e decidiu lava-la num
córrego ali próximo. Quando se encontrava nu, prestes a lavá-la, ocorreu-lhe
uma idéia. Ocultou o arco, as flechas e a túnica na vegetação. Com o auxilio de
um dos facões barbeou-se cuidadosamente; e depois também os ocultou.
Com o porte elegante e asseado rumou á aldeia,
completamente despido. Aproximou-se de uma das casas, fingindo-se cambaleante e
exausto. Não tardou para que alguns moradores o vissem e corressem a socorrê-lo
e cobri-lo.
Um velho ancião o levou á sua casa, e Gabriel fingiu
perder a consciência velho senhor murmurou para si mesmo “- Pobre rapaz devem
ter sido salteadores, percebo pelos traços que é um nobre; porque andaria só
por estas estradas. Seus pés estão demasiadamente feridos; muito deve ter
andado este infeliz."
Passadas algumas horas, atento a todos os
movimentos, Gabriel fingiu recuperar a consciência. O velho ancião que estava
vigilante aproximou-se:
-
Como te sentes rapaz?
Gabriel olhou-o fingindo zonzo e ainda sonolento.
-
Deves estar com fome, enquanto dormias fiz uma forte sopa!
O ancião afastou-se para pegar a sopa e depois o
auxiliando a se alimentar indagou:
-
Como te chamas rapaz?
Gabriel astutamente respondeu:
-
Chamo-me Lorde Henri II, senhor...
O ancião novamente o indagou:
-
Foram salteadores na estrada que te deixaram só e despido?
Gabriel novamente fingiu-se fraco e imensamente
esfomeado.
-
Sim senhor, mataram os dois guerreiros que trazia comigo e levaram-me a
carruagem e os pertences, deixando-me na estrada á própria sorte.
O ancião sentia enorme pena de Gabriel e levantou-se
para pegar outro prato de sopa. E Gabriel novamente a tomou esfomeado, ainda
que fome não sentisse.
-
Preciso voltar á minha propriedade senhor, poderás ajudar-me?
O ancião o observou novamente e disse-lhe:
-
A única coisa que posso emprestar-te é um cavalo veloz... tentarei
também conseguir uma veste para ti...a tua propriedade é distante?
Gabriel olhou-o agradecido dizendo-lhe:
-
Três dias de viagem senhor!
-
Estás perto de casa então, não precisarás de dinheiro; somente alguns
mantimentos.
Gabriel concordou humildemente com a cabeça e o
velho novamente analisou-o.
-
Onde queimastes a pele assim?
Gabriel estremeceu, mas disse-lhe firmemente:
-
Gosto muito de banhar-me diariamente nos rios de minha propriedade. O
sol queimou-me a pele com o tempo!
-
És um guerreiro não é Henri II? Vejo em teus enormes músculos.
-
Sim senhor, treino-me constantemente nas artes da guerra, mas os
salteadores nos atacaram á noite e não estava armado.
-
Compreendo rapaz, não te exaltes mais, irei providenciar o cavalo e as
vestes! Desejas partir ainda hoje?
Gabriel sentisse feliz pelo êxito:
-
Sim senhor, agradeço-lhe em demasia o auxilio, e lhe recompensarei tão
logo retorne a minha propriedade, um guerreiro lhe trará o cavalo e algumas
moedas de ouro.
O velho sorriu satisfeito e saiu a providenciar o
que o seu ilustre hospede precisava. Gabriel levantou-se e banhou-se. Quando o
velho retornou lhe trouxe uma veste fina, elegante e requintada. Digna de um
lorde.
-
Consegui emprestada com um amigo meu que costura para a nobreza. Sei
que a devolverás breve.
Gabriel a vestiu, e sentiu-se elegantemente
imponente. Pela primeira vez em sua vida, a pele lhe era tocada por tecidos tão
finos e tão sedosos.
-
És um bonito lorde!
Exclamou-lhe o ancião dando-lhe uma sacola com
mantimentos. Gabriel agradeceu-lhe imensamente a bondade e saiu da pequena
casa. Sob o olhar de alguns outros moradores, admirados com sua altivez e
imponência montou no cavalo e galopou ligeiro. Acenando agradecido ao velho que
o auxiliara. Retornou ao local onde deixara o arco, flechas e facões e pegou-os.
Olhou a túnica e desprezou-a, partindo ligeiro rumo ao castelo de Lorde
Orlando..
Aproximavam-se do castelo e Arthur explicou a Ricardo que o acompanhava
em montaria próxima:
-
Deixaremos Sara com uma senhora minha amiga, que reside aqui perto!
Poderás vir vê-la todos os dias se assim desejares!
Ricardo concordou e cavalgaram até uma pequena
casinha branca que ficava próxima a um rio de águas muito claras. O medico
observou uma pequena plantação de hortaliças cuidada com muito esmero e algumas
galinhas que passeavam livremente próximo a esta. Arthur ao aproximarem-se fez
sinal ao servo que os acompanhava, numa modesta carroça, com as bagagens e a
menina Sara, para que parasse. O nobre apeou da montaria e o medico a seu
exemplo também o fez. E caminhando em direção á pequena casinha branca, chamou
gentilmente:
-
Carol estás em casa?
A porta se entreabriu e uma senhora de longos
cabelos brancos, mas ainda jovem sorriu-lhe serena e radiante.
-
Meu menino Arthur, que bom ver-te; viajastes bem?
Arthur caminhou em sua direção e abraçaram-se
carinhosamente. Ricardo imediatamente percebeu que existia entre eles enorme
afinidade.
-
Carol, desejo apresentar-lhe um grande amigo!
Arthur caminhou então, de mãos dadas com aquela
bonita senhora, em direção ao medico.
-
Este é meu amigo Ricardo, medico de nossa família á muitos anos!
Carol cumprimentou-o gentilmente e observando a
carroça visualizou o servo e a menina, indagando-lhes surpresa:
-
E esta linda menina?
Arthur ajudou Sara a descer da carroça e
apresentou-a a Carol:
-
Esta é Sara a minha sobrinha e protegida!
A senhora olhou-a perplexa, mas nada lhe indagou.
-
Carol preciso que fiques com ela e a protejas por alguns dias...
Carol novamente sorriu-lhe em brandura, parecia
irradiar enorme paz que reluzia em seus olhos imensamente claros em tons
esverdeados. Balbuciou:
-
Será um imenso prazer ter a sua companhia1
Arthur então se desculpou pela brevidade, mas
precisavam chegar ao castelo antes do anoitecer e prometeu-lhe que as visitaria
pela manhã. Estavam a três horas de viagem do castelo de lorde Orlando e não
tardaria a escurecer.
Carol compreendendo-lhe a pressa pegou na mão de
Sara carinhosamente e levou-a para dentro da moradia despedindo-se.
O medico Ricardo acompanhou-as, levando alguns
pertences de Sara; poucos livros e seus pergaminhos de ensino.
Quando entrou no ambiente do modesto lar,
surpreendeu-se com a harmonia que este emanava. Modestamente mobiliado e
humilde, mas rico em claridade e paz.
Despediram-se e Arthur e Ricardo montaram novamente
e seguiram viagem silenciosamente. Somente o ranger das rodas da carroça que os
seguia, cortava o silencio. Como estavam próximos ao termino da viagem
cavalgavam lentamente, cansados da longa viagem. Derrepente Arthur disse ao
medico:
-
Por teu silencio, percebo que te surpreendestes com Carol minha amiga!
Ricardo não conseguia ocultar o quanto se
impressionara com aquela senhora de traços finos, pele delicada, e sorriso
encantador. Nunca se interessara desta maneira por nenhuma mulher. Carol havia
tocado um profundo sentimento.
-
Não posso negar-lhe senhor Arthur, estou imensamente impressionado com
esta senhora que acabei de conhecer... como nunca a vi? De que vive? De onde
veio?
Arthur gargalhou radiante, com o entusiasmo do
medico e isso fez com que Ricardo ficasse constrangido.
-
Não te retraias meu bom amigo; ainda sou apenas um rapaz, e desperto
somente agora para os impulsos amorosos que o meu coração possui; estou achando
magnifico o seu interesse por minha amiga! Contarei a estória de Carol!
Arthur contou que quando o velho Manco morrera, e
estando Anderson enfermo, sua mãe Joane o chamou, dizendo-lhe que precisava de
sua ajuda.
Explicou-lhe que encontraria uma senhora, morando
próximo a um rio claro, a três horas da propriedade; pediu-lhe que enquanto
esta senhora vivesse, ele deveria levar-lhe os suprimentos necessários á sua
subexistencia, todas as semanas.
Ricardo falou-lhe admirado:
-
Eras um menino, senhor Arthur!
Arthur entristecera-se com as doces lembranças de
sua mãe e respondeu-lhe melancólico.
-
Não tão menino senhor Ricardo! Sem fazer perguntas a minha mãe,
cavalguei com as orientações que me dera quanto á localização da sua moradia.
Fácil encontrei Carol. A primeira vez que aqui vim, me senti tão bem que não
deixei de vê-la uma semana que fosse. Por vezes, diariamente aqui vinha
conversar com uma grande amiga que ganhara.
O nobre deu uma pausa silenciosa e depois
prosseguiu:
-
Você está ciente Ricardo, do ambiente infeliz que se tornou o castelo!
Minha mãe vivia reclusa em seu aposento; Anderson e Brigith sempre retidos no
castelo; depois as mortes...
As feições de Arthur, mais se fechavam em tristeza,
mas prosseguiu:
-
Distraia-me nas artes da guerra, mas o que gostava mesmo era de
cavalgar! Quando me sentia só, vinha ver Carol que sempre me recebia com o
mesmo carinho e amor.
Ricardo mais se intrigava, e Arthur parecia desejar
auxilia-lo.
-
Senhor Ricardo, disse-me Carol que o velho Manco a salvara;
construiu-lhe a casa e nunca deixou que nada lhe faltasse... falou-me ainda que
caiu no rio quando lavava algumas vestes e este a arrastou por alguma
distancia; com a grande quantidade de água que engolira, perdeu os
sentidos; quando despertou no entanto,
lembra-se agradecida, que o velho Manco estava ao seu lado, na margem do rio,
aquecendo-a e protegendo-a... Nada mais me contou!
Ricardo unia apressadamente os pensamentos. Exclamou
para si mesmo surpreso "Não seria possível! Seria o destino ardiloso
demais!" Mas as coincidências eram muitas e o medico as juntava concluindo
uma só lógica. “Pensava:” Manco poderia ter ouvido rumores de que matariam a
mãe de Gabriel no rio, e decidiu salva-la; talvez Joane o houvesse alertado; e
o auxiliado com os recursos necessários á construção da moradia... somente isso
explicaria Carol viver tão só e tão reclusa, sendo tão meiga e ainda tão bonita
apesar da idade."
O medico extremamente curioso, encorajou-se e
indagou a Arthur:
-
Porque nunca se casou? É viuva?
Arthur interrompeu os seus pensamentos tristes, em
relação á família que perdera, para lhe dar atenção.
-
Realmente te interessastes em demasia por Carol, Ricardo! Nunca a vi
com ninguém e percebo que sempre viveu só, ainda que não compreenda por que!
Lembrando-se repentinamente de algo, falou ao
medico.
-
Certa vez , no entanto, olhou-me pensativamente melancólica e
balbuciou: "será que meu filho é tão bom qual tu o és?”... Mas rapidamente
modificou-se e novamente a vi feliz e radiante como sempre! Sempre a respeitei
não fazendo qualquer pergunta, temia perder a amiga!
Arthur interrompeu suas lembranças; olhou Ricardo
sorridente, e consolou-o amigavelmente.
-
Ricardo, com certeza amanhã veremos Carol novamente; poderás conhecê-la
melhor!
Ambos silenciaram em seus pensamentos e continuaram
a viagem tranqüilos.
Ricardo nada contara a Arthur, que a mãe de Gabriel
fora morta por ordem de seu pai. Desejava poupa-lo de maior sofrimento. Contara-lhe simplesmente que a sua mãe Joane,
revelara que Gabriel, era seu irmão bastardo e consequentemente este lhe era
seu tio.
Já anoitecera quando finalmente Arthur e Ricardo chegaram ao castelo. O
nobre, já havia alertado ao servo, que os acompanhava na carroça, para que nada
contasse a respeito de Sara e de sua amiga Carol. Este havia lhe jurado fidelidade.
Arthur entrou no castelo sem cerimonias, pedindo a
Ricardo que o aguardasse.
Os imensos salões estavam adornados e coloridos;
preparava-se uma festa, concluiu Arthur. Encontrou seu pai na imensa sala de
estar, escutando Linia que tocava uma linda melodia na harpa.
Lorde Orlando olhou-o imensamente surpreso com sua
presença ali, havia o visto aproximar-se quando chegava, através do imenso
vitral.
-
Boa noite senhor meu pai!
Propositadamente caminhou em direção de Linia e
beijando-lhe a mão disse-lhe:
-
Como tens passado querida irmã Brigith?
Linia olhou-o assustada, sentia o tom irônico em sua
voz, ainda que lorde Orlando não o houvesse percebido.
O lorde sentia-se feliz com a mudança de seu filho e
com o seu retorno. Não mais conseguia administrar a propriedade, deixando
inúmeras decisões a cargo do capataz Philip.
-
Voltastes breve meu filho? Onde te feristes?
Arthur sentou-se elegantemente numa poltrona e
contou os problemas que tivera com os salteadores na estrada; explicou-lhe o
motivo da ida a Adredanha e consequentemente porque trouxera o medico consigo.
O lorde escutou tudo atenciosamente, aceitando
convicto a estória dramática que o filho lhe contava.
-
Onde estão os guerreiros, não vieram contigo por quê?
Arthur deixara-os em Adredanha para proteger a
propriedade caso Gabriel mudasse de idéia e ali retornasse. Porem respondeu a
seu pai:
-
Luís o capataz, estava demasiadamente preocupado com os bando de
salteadores que andam pelas estradas; e achei que seria acertado deixa-los em
Adredanha para proteger nossa propriedade!
O lorde ficou feliz com as decisões maduras de seu
filho.
-
Fizestes bem, meu filho Arthur, ainda que tenhas te arriscado a viajar
sozinho e ferido! Deves estar muito cansado, recolhe-te a teu aposento e
banha-te para que possamos cear juntos.
Arthur agrediu Linia subtilmente, com um olhar
discretamente acusatório, mas dizendo-lhe delicadamente, para que seu pai
ouvisse:
-
Com licença minha irmã Brigith, retornarei breve!
Arthur também fez uma breve reverencia a seu pai e
retirou-se.
Após falar com Ricardo que tudo dera certo e que
poderia ir para seu aposento repousar, Arthur também foi aprontar-se para a
ceia.
A ceia transcorreu em normalidade, sendo que Arthur
sempre que tinha oportunidade mostrava claramente a Linia que a cortesia e a
delicadeza para com ela era mera encenação a seu pai.
Após a ceia foram repousar um pouco no salão de
festas e Arthur encorajou-se a indagar-lhes:
-
Teremos uma festa senhor meu pai? Vejo que tudo se embeleza para isto!
O lorde olhou-o vacilante, mas confiando na
transformação de seu filho, disse-lhe radiante de felicidade.
-
Tua irmã Brigith receberá em breve o seu noivo! Concretizar-se-á seu
matrimonio com lorde Pierre!
Arthur olhou Linia arrogante e falou-lhe com estrema
ironia, sem que o seu pai lhe percebesse o tom:
-
Mas que felicidade Linia; o pai de Pierre é uma das maiores fortunas da
corte; inúmeros títulos lhe virão!
Linia sorriu satisfeita concordando, mas estava
extremamente contrariada com as atitudes de seu irmão. O jovem nobre conseguia
ser extremamente sutil ao agredi-la.
Arthur voltou-se para seu pai e indagou-lhe
novamente:
-
Quando será este noivado?
Lorde Orlando olhou-o pensativo e respondeu firme.
-
Recebi uma mensagem, tem dois dias, dizendo que a família se aprontava
para fazer a longa viagem para cá, creio que chegarão a dez dias!
A noite seguiu divertida para o nobre Arthur, que
encenava harmonia para seu pai, e atacava Linia com olhares e gestos.
A jovem imensamente insatisfeita e incomodada com
aquela situação pediu licença ao seu pai, para se deitar e o lorde autorizou-a.
Arthur tão logo Linia afastou-se, também disse que
precisava repousar da longa viagem.
Quando o jovem em seu aposento sentiu que o seu pai
também se recolhera; colocou a espada na cintura e saiu rumo ao aposento de
Linia, caminhando vagarosamente. Percebendo que a porta estava apenas
encostada, sem lhe pedir licença, entrou rapidamente. Antes que Linia tivesse oportunidade de
gritar, Arthur tapou-lhe a boca com certa violência. E arrastando-a trancou a
porta com a estaca de madeira, para evitar que ali alguém entrasse enquanto
conversavam.
-
Irmazinha, agora nós vamos conversar! Mas primeiro precisas ficar bem
boazinha!
Arthur pegou um lenço que se encontrava sobre a
cômoda e imobilizou-lhe a boca; soltando-a posteriormente. Ameaçando-a para que
parasse de se agitar ou tentar fugir, Arthur tirou a espada da cintura, e a
encostou no ventre de Linia.
-
Senta-te quietinha; já te disse que precisamos conversar!
Linia pressionada pela espada sentou-se na cama
forçosamente contrariada.
-
Vou te chamar de Linia, porque não mereces usar o nome de minha irmã.
Nem mesmo chegas a seus pés! És vil, ardilosa, mentirosa e fútil! És falsa e
medíocre! Mundana e promiscua!
Linia o olhava enraivecida e completamente imobilizada,
pela espada de Arthur que a ameaçava e pelo lenço que a emudecia.
-
Sei que és minha irmã, mas antes não fosses, porque te desprezo a
conduta! Abandonastes a filha que te amava! Matastes o fiel marido que te
idolatrava e que te respeitou a infância, auxiliando-te e protegendo-te...
ambicionavas boas roupas, casa, dinheiro, títulos...és medíocre em demasia!
Arthur estava nervoso e pressionava a espada
fortemente em seu ventre.
-
Poderia matar-te como se faz com um verme, que aos nossos olhos é
repugnante e não tem qualquer valor... mas não o farei! Dou-te dez dias
Linia... somente dez dias para que sumas das propriedades de minha família.
Escutastes bem? Dez dias... Quando o teu noivinho chegar não estarás mais aqui!
Comporta-te direito e não faz escândalo, porque antes que ouses faze-lo eu te
corto a garganta.
Dizendo isto Arthur tirou-lhe o lenço da boca e
Linia ameaçou dizer-lhe algo:
-
Eu disse comporta-te direito! Não desejo sequer ouvir a tua voz, me
irrita!
Arthur saiu do aposento calmamente, e somente no
corredor guardou a espada, novamente em sua cintura.
Linia assustada levantou-se tão logo Arthur
afastou-se e rapidamente recolocou a tranca na porta, fechando-a. Sentisse
temerosa de que seu irmão resolvesse voltar.
A ira contida em seu peito aflorava nas faces
extremamente rosadas em
fúria. Sentisse enormemente agredida com suas inúmeras
blasfêmias de Arthur.
Linia tentou acalmar-se se sentando no leito.
Precisava pensar numa solução. Não poderia dizer ao lorde que Arthur estivera
no seu aposento. Não acreditaria! Ele havia sido tão sutil e tinha agido
propositadamente com um comportamento tão dócil desde que chegara! Mas
precisava imediatamente arrumar uma solução para afastá-lo. Não iria perder a
sua situação de nobreza; o conforto o luxo e a fartura. Não iria perder a
oportunidade que a vida lhe ofertara... não por um mancebo que lhe ameaçava a
vida. Precisava arrumar um aliado... mas quem? Tardiamente naquela noite Linia
finalmente conseguiu dormir.
Arthur acordou cedo, numa bela manhã no castelo de
Lorde Orlando, decidido há cavalgar um pouco pela propriedade. Cavalgou veloz
pelas colinas, pastagens e lago. O céu estava incrivelmente límpido e o ar
imensamente fresco. Sentia-se recuperado das viagens que fizera. Após longo
passeio retornou veloz ao castelo e apeando da montaria, visitou as sepulturas
de seus queridos familiares. Sentiu-se demasiadamente emocionado nas ternas
lembranças e na imensa saudade que sentia de todos. Olhou para o castelo e
amargurou-se com os inúmeros problemas que ainda lhe viriam. Caminhou pensativo
entrando na moradia e prontamente encontrou o seu pai que o aguardava.
-
Bela manhã, não é meu filho?
-
Sim senhor meu pai; aproveitei e fui cavalgar um pouco para ver como
estava a propriedade!
-
Sinto-me cansado Arthur, muitas decisões tenho deixado á
responsabilidade do capataz Philip... tens que
assumi-las imediatamente!
-
Com imenso prazer senhor meu pai!
-
Aguardava-te para fazermos a refeição matinal juntos.
Arthur olhou ao redor e não vendo Linia, indagou a
seu pai, mostrando-se aparentemente saudoso.
- Minha doce irmã Brigith não descerá para
alimentar-se em nossa companhia?
O lorde perspicaz analisava satisfeito o interesse
do filho pela irmã e concluindo que este lhe acatara plenamente as
determinações, ainda que soubesse que lhe era uma irmã bastarda, comportava-se
adequadamente como lhe ordenara. Imediatamente pediu a uma serva que chamasse
Linia, instruindo-a que a alertasse que a aguardavam no salão de refeições.
Arthur, embora indignado com toda aquela situação,
divertia-se interiormente. Desejava ver o semblante de Linia após as ameaças
que lhe fizera. Não tardou esta se aproximou do salão, Estava profundamente
abatida, "com certeza não dormira" pensou Arthur, sentindo-se
radiante, por lhe haver feito compreender o quanto sua presença ali era
desprezível.
-
Desculpai-me senhor meu pai! Atrasei-me um pouco!
Arthur desafiou-a com um olhar de advertência.
Levantou-se a reverenciando amigavelmente.
-
Bom dia minha irmã Brigith! Pareces-me abatida esta manhã; sentes-te
mal?
O lorde não se continha com a imensa alegria que
sentia em ver ser filho tão submisso a seus caprichos; mostrando-se
extremamente carinhoso com Linia. A jovem sentia-se enfurecida com a atitude de
Arthur, no entanto respondeu-lhe sorridente:
-
Bom dia meu irmão Arthur; não estou indisposta, sinto-me imensamente
bem!
-
Então minha irmã, não recusarás cavalgar comigo nesta bela manhã; o dia
está tão agradável!
Linia olhou-o contrariada com as provocações. O
lorde percebendo seu semblante indeciso falou-lhe gentilmente.
-
Cavalgarás com Arthur, logo após a refeição matinal; está sendo tão
gentil contigo!
Linia sentou-se e alimentou-se irada, pensava
atônita Como era possível que lorde Orlando não percebia os ataques sutis de
seu irmão...
Depois da refeição Artur se retirou a providenciar a
montaria para Linia, e logo os dois se distanciavam nas colinas indo rumo ao
lago. Ricardo os observava atentamente, pelo muito que já conhecia o jovem
Arthur, estava ciente que este não faria um passeio com Linia se não fosse para
provocá-la. O medico recordou-se de Carol, que tanto o impressionara e de Sara
a quem tinha extrema afeição e prontamente decidiu também cavalgar para ir
visita-las.
Arthur e Linia cavalgaram silenciosos. No lago a
jovem apeou da montaria e caminhou pensativa e preocupada com as verdadeiras
intenções de seu irmão, naquele passeio. No entanto Arthur nada fez ou lhe
disse; o convite para o passeio fora mera encenação para ludibriar seu pai.
Retornaram ao castelo após longa hora silenciosos e pensativos e o lorde os
aguardava atento defronte á imponente moradia.
Arthur falou-lhe eufórico:
-
Um passeio maravilhoso senhor meu pai; Cada dia me impressiono mais com
minha irmã; Brigith é encantadora!
Olhando Linia com proposital admiração profunda,
continuou com a divertida encenação.
-
O senhor meu pai acredita que dialogamos sem cessar neste prazeroso
passeio? Estamos nos dando extremamente bem!
Lorde Orlando sorriu-lhe agradecido, enquanto Linia
apeava da montaria e seguia para o seu aposento, se desculpando, pois sentia
uma ligeira indisposição.
Arthur estando a sós com seu pai aproveitou para
conscientizar-se do funcionamento das propriedades e tomar conhecimento de
alguns problemas nestas existentes.
Passava-lhe lorde Orlando o poder para tudo administrar em seu lugar.
O sol ainda não
se erguera por completo, quando Ricardo chegou á casa de Carol. Avistou-as
conversando animadamente, próximo a um rio que corria beirando a pequenina
moradia. Apeou da montaria e caminhou sorrindo na direção delas.
Carol também sorria feliz pela visita e Sara
prontamente correu na direção do medico abraçando-o saudosa.
Ricardo com a voz embargada de emoção, pelo extremo
afeto e carinho daquela menina, que já lhe era uma filha, murmurou:
-
Senti saudades Sara!
A menina olhou-o ternamente, ainda o abraçando.
- Ricardo, também senti muita falta do senhor!
Ricardo olhou então para Carol e sorriu-lhe
agradavelmente.
-
Bom dia Carol!
A senhora cumprimentou-o com grandiosa humildade,
dizendo-lhe que surpreendentemente em apenas uma noite, muito já se afeiçoara a
Sara.
Ricardo então, aproveitando-se da breve ausência de
Sara, que fora á moradia pegar alguns trabalhos de estudo para lhe mostrar;
encorajou-se no enorme sentimento que se expandia no seu peito, e falou-lhe:
-
Perdoai-me a ousadia Carol, porem não vim somente visitar Sara;
impressionado fiquei contigo e desejaria conhecer-te melhor!
Carol sentiu-se constrangida com a objetividade e a
sinceridade tão expontânea do medico e sem saber o que lhe responder sorriu-lhe
agradecida.
A tarde passou rápida e agradável. Após simples, mas
deliciosa refeição Sara saíra da moradia para colher algumas flores próximo ao
rio e Ricardo tivera a oportunidade de conversar longamente com Carol a sós. Já
o sol descia no horizonte quando Ricardo percebeu o quanto se fizera tarde.
Despedindo-se de ambas prometeu-lhes voltar no dia seguinte pela manhã e
cavalgou apressadamente em retorno ao castelo.
No caminho de regresso pensou em Carol e na imensa
afinidade que sentia por ela. Não lhe fizera indagações; falara-lhe um pouco de
Sara e de Arthur; e dialogaram longamente sobre diversos assuntos rotineiros
como clima, cultivo e vegetação.
Sentia-se incrivelmente bem e feliz ainda que não
houvesse se esquecido dos inúmeros problemas ainda a serem enfrentados.
Quando chegou ao castelo, encontrou o jovem Arthur
esperando-o.
-
Pelo teu semblante radiante sei aonde fostes, sem que me fales Ricardo!
-
Fui visitar Sara senhor Arthur.
-
Não consegues ocultar o que sentes meu bom amigo Ricardo. O brilho está
em teus olhos; não fostes somente visitar Sara; fostes visitar minha amiga
Carol!
Ricardo sorriu-lhe constrangido.
-
Senhor Arthur, não posso negar-lhe que estou perplexo com o que sinto
por Carol; nunca senti qualquer coisa parecida antes; é tão intenso!
Arthur abraçou-o amigavelmente.
-
Estás apaixonado Ricardo!
Repentinamente o jovem Arthur lembrou-se que
demonstravam demasiada amizade em frente ao castelo e não seria benéfico que o
lorde o visse dialogando em extrema intimidade com aquele servo. Falou receoso:
-
Precipitamos-nos amigo, em agirmos com tanta naturalidade em frente ao
castelo. Se meu pai tiver nos vistos assim juntos; não compreenderá nossa
proximidade!
Arthur deu uma pausa, olhando ao redor preocupado e
continuou.
-
Como se faz necessário limpar o ferimento de meu braço, melhor
dialogarmos em meu aposento.
O ferimento fora tratado tão logo amanhecera não
haveria necessidade de fazê-lo novamente; mas Arthur sentia enorme necessidade
de dialogar com Ricardo.
O medico imediatamente compreendendo os temores do
jovem nobre, rumou até á copa para pegar um pouco de água quente e algumas
faixas e depois acompanhou Arthur até o seu aposento, onde poderiam conversar
tranqüilamente sem receios.
Gabriel cavalgara
continuamente. Somente havia dado breves pausas para repouso sempre ao
anoitecer. Sentia-se, no entanto imensamente enfraquecido e resolveu apear da
montaria próximo a uma pequena aldeia.
Estava ciente de que ainda lhe faltavam
aproximadamente quatro dias para chegar á propriedade de Lorde Orlando e os
alimentos que o velho ancião lhe fornecera já tinham acabado á alguns dias.
Sentia fome, pois aqueles dias se limitara a comer
frutas silvestres. Ainda que pudesse tranqüilamente se embrenhar na mata densa
para caçar; optara em não o fazer; Teria que cozinhar o alimento e não desejava
perder tempo ou chamar a atenção, de possíveis moradores, com a conseqüente
fumaça. As terras distantes da propriedade de Lorde Orlando lhe eram
desconhecidas.
Já escurecera e sentia-se exausto.
Caminhou lentamente, segurando o cavalo que o
acompanhava ofegante, até se aproximar de um conjunto de casas. Nestas se
comemorava uma festa típica, com muita musica e dança.
Os moradores percebendo-lhe a presença silenciaram e
os homens da aldeia se agruparam para receber-lhe considerando-o um intruso. Um
dos homens, que deveria ser o líder da aldeia, aproximou-se de Gabriel e
indagou-lhe com seriedade extrema.
-
Quem és tu? De onde vens e o que desejas em nossa aldeia?
O tom de voz lhe era hostil. Gabriel fazendo-lhe um
cordial cumprimento falou.
-
Meu nome é Gabriel, venho da corte em viagem contínua. Sinto-me cansado
e preciso de um leito onde possa repousar um pouco!
O homem analisou-o atentamente.
-
Te vestes como um lorde...
Gabriel envaideceu-se o interrompendo.
-
Sim senhor, venho das terras de meu pai para visitar um grande amigo;
faltam-me, no entanto ainda dois longos dias de viagem.
O homem extremamente intrigado indagou-lhe:
-
Porque viajas só? Onde estão os guerreiros que te acompanham?
O líder daquela aldeia olhava-o, com uma vivacidade
impressionante e por um instante Gabriel receou ter entrado naquelas terras,
onde era visto como um estranho intruso. Balançou a cabeça humildemente,
mostrando-lhe o arco na montaria enquanto dizia.
-
Gosto de viajar só e sinto-me seguro!
-
Os lordes são bons guerreiros com as espadas, dizes-me tu que és um
lorde arqueiro? Que ferramenta mais rústica, posso observá-la?
Sem aguardar resposta e sentindo a proteção dos
demais homens da aldeia, o líder se aproximou do cavalo sem receios e observou
atentamente o arco e as flechas.
Para enorme perplexidade de Gabriel o homem
exclamou:
-
És um salteador! Observo no arco e nas flechas que os mesmos são feitos
por tuas próprias mãos que percebo serem muito ásperas e rudes; o teu corpo
atlético demonstra servidão, e o cavalo no qual viajas não é de uma raça pura;
Quanto ao traje onde o roubastes?
Gabriel sabia que precisava sair da aldeia
imediatamente antes que os demais homens, que ainda se mantinham em distancia
significativa, mas já de posse de suas armas de defesa, o rendessem.
O cavalo lhe estava próximo. Com extrema agilidade
alcançou a montaria, cavalgando velozmente para fora da aldeia. Os homens da
aldeia, no entanto já o perseguiam em trotar ligeiro. Conseguiu esconder-se na
densa vegetação e sem sair da montaria, segurou o arco e lhe colocou uma
flecha. Não tardou a que os homens alcançassem a sua mira, e Gabriel então foi facilmente
atingindo-os com flechas rápidas e certeiras. Quando havia criado tumulto
suficiente, Gabriel finalmente conseguiu fugir em segurança.
O cansaço havia aumentado demasiadamente e a fome
era-lhe cada vez mais acentuada. Não poderia parar para repousar ou procurar
alimento, enquanto não se distanciasse significativamente daquelas terras.
Cavalgou continuamente aquela noite, até o dia
clarear e somente então parou para repousar próximo a um rio.
Quando despertou percebeu que o sol já ia alto;
banhou-se tranqüilamente e depois vasculhou a vegetação procurando algum
alimento. Optou mais uma vez em não caçar; acender uma fogueira seria muito
perigoso. Sentindo-se impossibilitado de caçar alimento mais nutritivo,
limitou-se novamente a colher algumas frutas que comeu voraz. Estas eram insuficientes a nutrir o corpo
robusto que possuía porem determinado a alcançar brevemente o castelo, resolveu
prosseguir viagem.
O repouso o descansara plenamente, mas o seu corpo
mal alimentado reclamava em enfraquecimento excessivo.
No castelo o dia passava rápido e em tranqüilidade. Na
longa conversa da noite anterior, Arthur havia indagado ao medico Ricardo, onde
Gabriel se ocultaria ao chegar á propriedade. O medico o havia alertado sobre a
gruta próxima ao lago e sobre o armamento que ali se ocultava.
Temerosos de que lorde Orlando não houvesse tomado
providencias a respeito, tinham combinado cavalgar até lá no dia imediato.
Arthur finalizara suas obrigações na propriedade e
agora se encontrava com Ricardo sem que ninguém os visse juntos, para irem ao
lago.
-
Ricardo compreendo agora que a serva Lana, nos será importante aliada.
Recebi teu recado e foi prudente pedires para nos encontrarmos aqui; não seria
bom que nos vissem cavalgando juntos; devemos ser breves para que não sintam
nossa falta!
O medico pensativo meneou a cabeça concordando.
-
Estás silencioso demais Ricardo... o que houve? Fostes ver Carol?
O médico serio e demasiadamente preocupado
falou-lhe.
-
Não senhor Arthur! Tão logo amanheceu Philip me procurou, para que eu
auxiliasse alguns servos doentes!
Arthur deu um expontâneo sorriso.
-
Compreendo agora a sua seriedade; não teve o meu amigo o tempo
necessário para visitar nossa amiga Carol e tua enteada Sara!
O medico censurou-lhe.
-
Não brinques senhor Arthur; temo por sua segurança!
O jovem nobre sentindo que algo existia de muita
gravidade puxou os arreios do cavalo para pará-lo e olhou fixamente para o
medico que também havia parado de cavalgar.
-
Ricardo estás intranqüilo porque Gabriel se aproxima?
O semblante do medico fechou-se mais ainda,
dizendo-lhe:
-
Não senhor Arthur; Gabriel poderá matar somente alguns de nós; a grande
moléstia poderá matar a todos nós!
Arthur apeou da montaria assustado.
-
De que falas Ricardo!
O medico também apeando da montaria voltou-se para
Arthur explicando-lhe.
-
Como lhe disse senhor, fui ao pavilhão dos servos, que fica próximo á
área de cultivo; Philip estava extremamente preocupado com alguns servos
adoentados... Chegando lá, fiquei perplexo ao constatar que adultos, velhos e
crianças estão com a mesma enfermidade; os contei em trinta!
O jovem Arthur compreendia o que Ricardo lhe dizia e
indignou-se.
-
Porque o capataz nada alertou sobre isto ao senhor meu pai?
-
Disse-me Philip que o alertou sobre o problema com os servos; mas que
lorde Orlando ordenou-lhe que tomasse providencias sozinho e não mais o
incomodasse com isso. Quando Philip nos viu chegando de Adredanha, sentiu-se
aliviado mas somente conseguiu falar comigo hoje, porque como sabes ontem
passei longo tempo ausente na casa de Carol...
Arthur caminhava agora inquieto de um lado para o
outro.
-
O que sentem os enfermos, Ricardo?
O medico explicou-lhe que a enfermidade apresentava
febre hostil e ininterrupta; ocasionando incontrolavel problema fecal e violentas crises de vomito que
impossibilitavam aos enfermos se alimentarem; enfraquecendo-os e
desidratando-os numa velocidade impressionante.
Arthur colocou a mão na cabeça desorientado.
-
Uma febre! Uma febre que se alastra! A peste, não é Ricardo?
O medico afirmou-lhe que sim, contando-lhe, que
segundo o capataz Philip, tudo começara, com um mensageiro que chegara ao
castelo, trazendo a confirmação do noivado de Linia. No dia seguinte, este servo
que viera da corte, já ardia na febre agonizante. Imediatamente os demais
servos foram adoecendo. Arthur novamente
o indagou assustado:
-
Já isolastes os servos doentes?
-
Precisava falar contigo senhor Arthur! É necessário providenciar um
outro pavilhão para abrigar os doentes!
-
Retornaremos prontamente ao castelo Ricardo; Lá poderemos providenciar
que se construa imediatamente um outro
abrigo.
Os dois cavalgaram apressadamente rumo ao castelo.
Aproximando-se do capataz, Arthur pediu-lhe que se construísse com enorme
rapidez um abrigo fechado próximo ao rio.
-
Philip, precisamos deste abrigo pronto ao amanhecer! Chame todos os
servos se necessário for. Corte toda a madeira nobre desta propriedade, se for
necessário. Por nossa vida te peço toda esta urgência!
Philip imediatamente compreendeu o desespero daquele
nobre; Era a peste que matava a todos sem distinção. Assustado seguiu a atender
prontamente suas determinações. Não receava executa-las, sem falar primeiro com
o lorde Orlando, estava ciente de que também estava agindo para salvar sua
própria vida.
O desespero e o empenho se associaram, numa só
determinação entre todos os servos, que trabalharam arduamente, naquele final
de tarde e durante toda a noite. Ao amanhecer, sob os olhares sempre vigilantes
do nobre jovem Arthur e do medico Ricardo, um grande abrigo, próximo ao rio,
fora erguido.
Estavam todos demasiadamente cansados pelo contínuo
trabalho e pela interminável noite de vigília.
A preocupação no entanto, impunha-lhes que o trabalho não cessasse, naquele novo dia, que clareava intenso em
aflições.
Ricardo olhou o nobre, falando-lhe amargurado.
-
Nobre Arthur, começarei imediatamente a transferir os servos doentes
para este abrigo que foi construído!
-
Não temes tu a peste amigo Ricardo? Poderei ordenar que os servos o
façam e que cuidem eles mesmos dos doentes!
Ricardo olhou-o agradecido, sentia que a preocupação
daquele jovem, demostrava a grande amizade e afeto que já lhe tinha, e que era
plenamente reciproca em si; respondeu-lhe humildemente.
-
Senhor Arthur, este é o meu trabalho e o farei com imenso amor e
dedicação; não temo ficar doente!
Fez uma longa pausa pensativo e depois prosseguiu:
-
No entanto, peço-lhe que designe três servos para auxiliar-me, sinto
que precisarei de auxilio! É importante, que somente nós quatro, tenhamos
contato contínuo com os doentes. E nenhum de nós se ausentará do
abrigo...agindo assim tentaremos evitar que a peste se propague!
O nobre olhou-o sentindo enorme admiração.
-
Providenciarei os servos que me pedes; Pedirei ainda a Philip que
providencie limpeza rigorosa no pavilhão
onde os doentes se encontram tão logo os transfiras para o outro abrigo!
O jovem nobre, tentando lembrar-se de alguma
providencia que houvesse sido esquecida, falou ainda:
-
Ricardo, preocupo-me com Carol e
Sara!
Ricardo olhou-o também apreensivo :
- Seria prudente que lá fosses Senhor Arthur e as
advertisses que por inúmeros problemas no castelo, não poderemos visita-las por
longo tempo...
Arthur interrompeu-o, para dar seqüência ao que
dizia.
-
Farei melhor Ricardo; enviarei-lhes uma mensagem com enorme quantidade
de alimentos; mas não comentarei sobre a peste para que não se preocupem em
demasia!
-
Pensastes certo Senhor Arthur; de que adiantaria preocupa-las com
nossos problemas; lá estarão em proteção longe do possível contagio!
Arthur perguntou então ao medico se este poderia
sugerir-lhe um servo que podesse levar-lhes a mensagem e que fosse prestativo e
extremamente fiel para ficar a seus serviços. Teria que ser um ainda, que não
tivesse tido qualquer contagio com os doentes. O medico prontamente lhe
aconselhou o servo Silvio, pois este raramente se afastava do celeiro.
O nobre Arthur afastou-se por breves instantes para
escrever a mensagem a Carol:
"Querida
Carol
enormes problemas
no castelo!
Mando-te
mantimentos em abundância porque teremos
dificuldade
em visitar-te por longo tempo!
Dou ordens ao servo Silvio para que fique a
teu serviço.
Quando
pudermos apareceremos.
Minha
eterna gratidão
Arthur"
Retornou tão logo a escreveu e entregando o
pergaminho ao servo Silvio, que já providenciara os suprimentos e os arrumava
na carroça, falou-lhe:
-
Silvio, peço-te que nada lhes digas a respeito da peste; não desejo
preocupa-las!
O servo prestativo, jurou-lhe fidelidade e após
guardar habilmente a mensagem em suas vestes,
partiu veloz na direção que lhe fora indicada pelo medico.
Arthur e Ricardo sentiam-se aliviados vendo-o
distanciar-se. Sentiam que elas estariam a salvo da peste.
Ricardo olhou então o jovem nobre, despedindo-se
deste:
-
Nobre Arthur, somente nos veremos finda a peste. Deves pedir a Philip
que encaminhe todos os doentes para o abrigo onde estarei pronto a auxilia-los
como puder. Oremos para que a peste se restrinja aos trinta!
O medico deu uma pausa e sorrindo forçosamente,
continuou:
-
Se Gabriel aparecer, terás que cuidar dele sozinho!
Arthur também sorriu aflito mas tentando mostrar-se
confiante.
-
Amigo Ricardo eu o admiro muito!
Ricardo deu-lhe um abraço fraternal sem mais nada
dizer-lhe, e afastou-se para transferir os doentes para o novo abrigo.
Arthur após ver o medico distanciar-se, caminhou
pensativo e demasiadamente preocupado para o interior daquelas muralhas de seu
castelo.
Encontrou o seu pai com o semblante contrariado e
demasiadamente nervoso:
-
Meu filho deves-me explicações!
Arthur não compreendendo-lhe a fúria, olhou-o
sentindo-se exausto.
- Tão logo despertei, ouvi rumores de que mandastes construir um outro abrigo próximo
ao rio; porque o fizestes?
O jovem caminhou até o salão e sentou-se próximo a
Linia dizendo-lhe em obrigatoriedade.
-
Como te sentes minha irmã Brigith?
Depois olhou o lorde que o acompanhara, também
sentando-se, diante de si e indagou-lhe:
-
O senhor meu pai estava ciente de que haviam doentes na propriedade?
-
Lógico que sim Arthur; sempre temos servos doentes. São fracos e
adoecem constantemente trazendo enorme prejuízo ás lavouras! Porque julgas que
deveria me preocupar em demasia com eles?
Arthur controlou-se na indignação que sentia ás
palavras de seu pai. Falou-lhe calmamente
mas com a voz embargada em revolta, tornando-a rouca.
-
Senhor meu pai, são trinta servos que estão doentes!
-
Estava ciente disto Arthur e ordenei a Philip que os liberasse das
tarefas.
-
O senhor não compreende a gravidade desta moléstia? A nossa propriedade
é invadida por uma terrível febre. Uma peste senhor meu pai!
Linia estremeceu com palavras tensas e temerosas de
Arthur porem o lorde Orlando mantinha-se extremamente calmo exclamando friamente e com imensa altivez.
-
São meros servos meu filho!
Arthur não conseguiu mais se controlar na profunda
indignação que sentia, levantou-se falando-lhe ferozmente.
-
A peste não tem fronteiras senhor meu pai; não escolhe classes, títulos
ou poder econômico... a peste chega a
todos!
O lorde também enfurecido com a arrogância de seu
filho, levantou-se e caminhou na direção dele. Em completa superioridade,
disse-lhe com naturalidade.
-
Somos fortes meu filho. Não somos iguais a esses meros servos, temos
sangue nobre! A peste é somente para essa raça inferior, nunca atingirá a
nobreza! Ordenei ao capataz que me desse
explicações do que fazias e ele contou-me que destruístes grande parte de nossa
madeira nobre, e fatigastes nossos servos por noite inteira, o que os
impossibilitará de serem completamente produtivos em suas tarefas no cultivo!
Arthur olhou completamente perplexo, para aquele
velho senhor que estava irreconhecível. O jovem não mais sentia-se indignado,
no seu peito crescia enorme piedade pelo senhor seu pai e
pelos seus valores tão deturpados que só agora ele percebia..
Sentindo-se imensamente preocupado com a peste e com
as inúmeras providencias ainda a serem tomadas, não poderia perderia tempo a
argumentar com aquele nobre imponente e insensato. Falou-lhe submisso.
- Perdoai-me senhor meu pai pelo que fiz, desesperei-me!
O senhor tem completa razão...precipitei-me! Somos uma raça superior e estamos
livres de adoecer! Peço-lhe licença para me retirar, senhor meu pai!
Arthur não esperou que o pai lhe desse licença;
afastou-se imediatamente saindo novamente do castelo. Precisava orientar Philip
em como deveria agir com os servos. Pediu-lhe que os orientasse sobre a peste e os seus sintomas e que todo
aquele que se sentisse doente, deveria dirigir-se ao abrigo onde o medico
Ricardo se encontrava para auxilia-los.
Os dias passaram em muita apreensão e inúmeros temores . Philip
comunicava freqüentemente ao nobre Arthur, sobre novos casos de peste, até que
o fiel capataz também adoeceu e se encaminhou ao abrigo.
Arthur assumia agora a árdua tarefa de administrar a
propriedade. Ainda que narrasse constantemente a situação ao Lorde Orlando,
este se mantinha despreocupado e ciente de que a peste não entraria no castelo.
No entanto, os servos que se mantinham fechados no
interior daquelas muralhas, também começaram a adoecer.
Arthur desesperava-se controlando os números da
doença. Em apenas cinco dias, setenta servos haviam adoecido e destes, quarenta
e oito haviam morrido.
Sabia que o médico Ricardo mantinha-se em trabalho
incessante, medicando e auxiliando como que lhe era possível.
Admirava-o cada vez mais. A sua persistência ,
dedicação e amor pareciam ser inesgotáveis. Mas o nobre jovem temia pela saúde
daquele bom medico, ficando este, continuamente exposto ao contagio.
Naqueles longos dias, o jovem por vezes refletia nas
frias e insensatas palavras de seu pai "... a nobreza estava á salvo da peste "...
Naquela tarde quente, repentinamente a serva Lana
surgiu, tirando-o de seus pensamentos. Correndo em sua direção, disse-lhe:
-
Senhor Arthur, o senhor seu pai arde em febre e delira horrores!
Arthur apressou-se em ir ao castelo e encontrou o
velho Lorde, se debatendo sobre o piso do imenso salão.
Linia olhava-o apavorada , encolhida numa poltrona
distante; Vendo Arthur disse-lhe em voz tremula:
-
Nosso pai estava bem; nós
conversávamos quando tudo isto começou!
Arthur olhou-a indiferente, e lembrando-se das
palavras frias de seu pai falou-lhe:
-
É a impiedosa peste, que também ataca a nobreza!
O jovem sem hesitações, e com o auxilio de um servo,
amparou o seu pai para leva-lo para o abrigo dos doentes. Quando já se
afastavam do castelo, escutou Linia gritando-lhe em censura:
-
Não creio meu irmão, que o levarás para junto de meros servos... ele é
um Lorde!
Arthur voltou-se olhando-a com imensa frieza e gritou-lhe irônico :
-
Desejas abriga-lo em teu aposento irmanzinha?
Linia silenciou, correndo para seus aposentos e
decidida a não sair mais de lá, enquanto a peste não acabasse. Não poderia
adoecer. Não agora que seu noivo Pierre estava prestes a chegar.
Arthur se aproximava pela primeira vez do abrigo dos
doentes. O Lorde delirava em estado profundamente febril. O médico Ricardo,
vendo que se aproximavam exclamou entristecido:
-
Senhor Arthur, o lorde também adoeceu!
O nobre e o servo entraram no abrigo sem receios,
colocando o Lorde Orlando deitado no chão, sobre um dos leitos de feno, que
eram improvisados por Ricardo.
O jovem nobre olhou ao redor; vinte dois enfermos
agonizavam ali com a febre alta. Olhou o médico
indagando-lhe amedrontado:
-
Mais alguma morte Ricardo?
O médico estava com uma aparência extremamente
abatida. A barba crescera-lhe mostrando que pouco se preocupara consigo mesmo
naqueles dias.
-
O capataz Philip acaba de falecer!
Arthur balançou a cabeça desolado; sentia-se
impotente diante daquela moléstia e de suas conseqüências. O médico Ricardo
levou-o para fora do abrigo, compreendia-lhe á aflição e a tristeza. Murmurou
colocando-lhe a mão no ombro carinhosamente:
-
É a peste Arthur...não podemos evita-la e nem cura-la! Deus escolhe os seus filhos e os leva ou
os deixa ficar!
Arthur perplexo com a sua serenidade e sentindo-se
imensamente fraco, deixou que quentes lagrimas rolassem sobre suas faces,
indagando-lhe suplicante:
-
Ricardo, quando isto acabará?
O médico, que ainda o amparava com a mão no ombro;
olhou o céu imensamente azul e apontando-o disse confiante:
-
Nobre Arthur, deixai que Nosso Pai o decida!
Arthur baixou
a cabeça inconformado; Sentia enorme temor dentro de si. Tentando conter as
suas lagrimas falou desesperado.
-
Vamos morrer todos!
Ricardo olhou-o piedosamente e resplandecendo uma
imensa fé em seu Criador
, o consolou:
-
Se assim for da vontade de
Nosso Pai, também estarei pronto a
partir!
No entanto nobre Arthur, enquanto Ele
não expressar esta vontade, devemos continuar trabalhando. Deus Nosso Pai
continua nos concedendo o corpo apto a cada manhã para que possamos prosseguir
auxiliando, confortando, consolando e amparando os muitos que de nós precisam.
Precisamos saber dar-lhe graças por cada dia que nos é concedido de vida
nobre Arthur.
Arthur escutou silencioso o consolo do medico,
sentindo-se envergonhado por sua falta de fé; As palavras de Ricardo
inexplicavelmente lhe transmitiam enorme paz e sentia uma força restauradora
crescer dentro de si.
Olhou para o
seu pai enfermo no abrigo, despedindo-se antecipadamente dele num abraço
interior; e agradecendo ao medico com um olhar seguiu para a sua árdua rotina
dia
diária, administrando a propriedade e os seus
moradores.
Gabriel estava mais próximo do castelo e exultava de felicidade.
Finalmente conseguira o que tanto ambicionava; após longos e árduos dias de viagem, penosa e solitária; se
alimentando somente de frutas silvestres
Estava decidido a procurar a gruta assim que
chegasse a propriedade. Lá teria a fartura das plantações de Lorde Orlando e
finalmente poderia caçar e cozinhar. Estaria seguro e em proteção e poderia
ainda quando desejasse vigiar a vida no castelo.
Distraído em seus pensamentos, Derrepente sentiu uma
forte vertigem e um arrepio frio que lhe
correu o corpo, porém ignorou a indisposição decidindo continuar cavalgando
lentamente, pois o sol ainda ia alto e desejava chegar a propriedade de Lorde
Orlando antes que escurecesse.
O sol declinava a sua majestade quando Carol pediu a
Sara que a auxiliasse a recolher algumas hortaliças para fazer um caldo
substancioso para a ceia. Silvio saíra cedo para pegar lenha e ainda não
retornara." Com certeza se distraíra tentando caçar algo" pensou
Carol. Gostara daquele rapaz gentil e
tão prestativo, que o nobre Arthur lhe enviara para auxilia-las.
Sentia-se imensamente preocupada com a falta de
noticias de seu menino Arthur ; concluindo que os problemas que desconhecia,
ainda não tinham acabado.
Porem sentia-se bem na alegre companhia de Silvio e
Sara.
Recolhiam tranqüilamente as hortaliças, ansiosas por
escutar o barulho das rodas da carroça de Silvio que anunciariam a sua chegada.
O sol já se escondera, quando na pequena casinha,
repentinamente escutaram o relinchar de um cavalo, e caminharam rapidamente a
porta para receber Silvio e indagar-lhe porque demorara.
Num brilho ainda tênue do dia , Carol percebeu
surpreendida , um cavalo solitário próximo á sua casa. Temerosa, prudentemente
pediu a Sara que ali ficasse, enquanto caminhou na direção deste. Aproximou-se
percebendo perplexa que um forte jovem estava deitado sobre seu dorso.
Carol puxou o cavalo para bem próximo da moradia e
sabiamente o fez abaixar-se. Pediu a ajuda de Sara, e com extrema dificuldade
tiraram o desconhecido da montaria.
A nobre senhora observou-o atentamente, sentindo uma
enorme emoção, em seu interior, que não compreendia. Percebeu imediatamente que
o desconhecido não era um jovem, mas um
homem forte e de traços finos. Trajava-se elegantemente ainda que a veste
estivesse imensamente suja. Olhou para o cavalo, ainda em seu dorso, havia um grande arco e um
conjunto de flechas; A nobre senhora concluiu que deveria ser um caçador.
Carol preparava-se para arrasta-lo até o interior de
sua casa, quando escutou a voz de Silvio acompanhada pelo leve ranger das rodas
da carroça.
-
Carol... Sara... estou chegando!
Na noite já escura, somente o avistaram quando este
se aproximou, caminhando em sua direção.
- Trouxe muita lenha e finalmente consegui caçar!
Ao aproximar-se Silvio surpreendeu-se vendo o homem
imóvel no chão e indagou-lhes assustado:
-
Quem é ele?
Carol pediu-lhe que ajudasse a leva-lo para o
interior da casa e assim prontamente Silvio a auxiliou.
No interior da casa,
com a claridade da lenha que queimava, Carol podia analisar se possuía
algum ferimento.
Aparentemente não havia sido ferido, mas Carol
percebeu o imenso Calor que emanava do seu corpo.
-
Está ardendo em febre! Ajudai-me Silvio! Sara vá até o rio e traga água
fresca!
Enquanto Sara saiu a pegar a água, Silvio ajudou
Carol a lhe tirar a veste e a banha-lo com a pouca água ainda existente no
tonel. Realizada a difícil tarefa, o cobriram com uma manta alva e limpa.
Sara entrou apressada trazendo a água fresca e então Carol
pediu-lhe que molhasse um trapo e o colocasse na face do desconhecido para
amenizar-lhe a temperatura. Assim Sara foi umedecendo o pano e colocando-o
serenamente sobre o rosto daquele homem; enquanto Carol saiu da moradia
acompanhada por Silvio que havia acendido uma tocha para clarear o caminho.
-
Aonde vai Senhora Carol?
Carol caminhava decidida até o cavalo de Gabriel e
não lhe respondeu. Aproximando-se deste verificou os pertences ali existentes,
somente o arco e as flechas; dois facões e uma pequena sacola com algumas
frutas. Balbuciou espantada:
-
Nenhuma veste...nenhum dinheiro...
Silvio auxiliou-a a tirar o armamento do cavalo e
Carol disse-lhe:
-
Querido Silvio, peço-te que escondas este material bem longe desta
casa!
O rapaz rapidamente embrenhou-se na mata e
demorou-se certo tempo a voltar.
-
Pronto senhora, tudo está bem guardado!
Carol pediu-lhe então que prendesse o cavalo,
próximo á carroça e lembrou-se:
-
Dissestes que caçastes?
Silvio olhou-a vaidoso.
-
Sim senhora Carol, peguei uma grande lebre!
-
Que bom Silvio! Amanhã a refeição será forte e o viajante se alimentará
melhor!
O rapaz feliz por agradar a senhora Carol,
afastou-se a tratar do cavalo. Quando retornava á casa percebeu que o vento
começava a soprar diferente e entrou dizendo-lhes:
-
Teremos tempestade!
Carol olhou-o apreensiva mas sempre com o mesmo
semblante sereno e sorridente.
-
Como sabes Silvio?
Silvio olhou-as brincando:
-
O vento me disse senhora!
Ambos riram descontraidamente. Sara olhou-os séria e afirmou-lhes:
-
Serão inúmeras tempestades, senhora Carol! Peça a Silvio que traga toda
a lenha para dentro e que solte os cavalos; para que possam se abrigar
sozinhos!
Carol
surpreendida com a seriedade de Sara ao falar-lhes isto , e indagou-lhe:
-
Como sabes disto Sara?
A menina olhou-a demonstrando imensa paz e
sinceridade e explicou-lhe:
-
Meu pai me disse!
Carol lembrou-se imediatamente, que o medico Ricardo
havia contado a estória de Linia e Job, os seus pais. Por isto sabia que o seu
pai havia falecido repentinamente num mal do coração.
Para não contraria-la, ainda que não acreditasse no
que dizia, pediu a Silvio que o fizesse.
Quando Silvio terminou a tarefa de transferir a lenha da carroça para a casa já
a noite ia alta. Banhou-se no rio e soltou os cavalos. Entrou na casa sorridente:
-
Terminei a tarefa senhora Carol; mas creio que o vento me contou uma
mentira, nenhum sinal de tempestade. Agora a noite está bonita e demasiadamente
serena.
Carol pediu a Silvio que se alimentasse e foi
substituir Sara na tarefa de molhar a fronte do desconhecido, pedindo-lhe
também.
-
Vai alimentar-te Sara!
A menina afastou-se cedendo o lugar a Carol e foi
servir-se também do caldo que ainda fervia na lenha. Olhou Silvio e sentando-se
próximo deste disse-lhe:
-
O vento não mentiu...serão inúmeras tempestades!
Silvio olhou-a curioso por seu semblante sério; mas
alimentou-se silencioso. Após se alimentarem Sara deitou-se em um leito
improvisado no chão e assim também o fez Silvio.
Carol ficou mais algumas horas auxiliando o
desconhecido e como este dormia sereno em sua cama, resolveu também dormir.
Improvisou um leito para si e deitou-se pensativa.
Quase amanhecia quando Arthur foi despertado por um
servo.
-
Senhor Arthur acordai!
O jovem nobre cambaleou sonolento, observando que
ainda estava escuro. "Que teria acontecido!" pensou abrindo a porta
assustado:
-
O que acontece?
O servo estava serio e apreensivo:
-
O medico Ricardo mandou chama-lo!
Arthur saiu do aposento rapidamente. Confiava no
amigo Ricardo e sabia que não mandaria chama-lo se não estivesse acontecendo
algo. Breve chegava ao abrigo dos doentes e encontrou Ricardo agoniado. O jovem
prontificou-se em falar.
-
Não precisas dizer-me Ricardo...meu pai faleceu!
O medico Ricardo concordou com a cabeça, e Arthur
deixou-se emocionar em pranto sentido. Ricardo colocou-lhe a mão no ombro
tentando reconforta-lo e disse-lhe:
-
Senhor Arthur, temo que não tenhas tempo para a dor!
Arthur olhou-o secando as lagrimas e então Ricardo
apontou-lhe o céu ainda enegrecido pela noite.
O nobre compreendeu o alerta do medico, percebendo
que pelo horário que era, já devia estar claro!
Nuvens grotescas se acomodavam sobre a propriedade e
um forte assobio se fazia ouvir bem ao longe. Exclamou:
-
Uma tempestade!
Ricardo então lhe disse que o abrigo não suportaria
a fortes ventos. Arthur sem hesitação procurou os servos do castelo para que
estes auxiliassem a levar os doentes para o interior deste. Cavalgou veloz
alertando os servos da propriedade para que recolhessem animais e mantimentos e
também para lá fossem. No interior do castelo; as muralhas os protegeriam.
No enorme pátio interno do castelo foram recolhidos
os animais; no pavilhão interno dos servos, acomodaram-se os doentes. Os servos
sadios apertavam-se em todos os cantos e corredores da imponente moradia.
Lorde Arthur falou-lhes:
-
Enterrarei meu pai lorde Orlando e virei para junto de todos vós!
Impressionantemente todos os servos o acompanharam,
ainda que os ventos já se tornassem assustadores. Somente Linia não compareceu.
A cerimonia foi breve e fria, na forte chuva que
começava a cair. O assobio aumentava e parecia cada vez mais próximo.
Todos já se encontravam no interior do castelo
quando o vento chegou impiedoso arrancando tudo o que encontrava pela frente.
Ricardo que se encontrava no imenso salão com o
lorde Arthur, visualizava tudo das janelas, que inúmeras vezes quebravam-se com
a força terrível daquele vento. Arthur sentado em uma poltrona disse
angustiado:
-
Preocupo-me com Carol e Sara!
O medico também temia pela segurança delas, mas
confortou-o:
-
Deus as protegerá!
O lorde Arthur sentisse cada vez mais intrigado com
a sua fé e balbuciou desanimado:
-
Primeiro a peste...agora uma tempestade nunca vista antes...
Ricardo aproximou-se dizendo-lhe:
-
Tenha fé senhor Arthur, creia que a tempestade veio para levar a peste
para longe!
-
Ricardo, a peste está aqui no interior do castelo; enfermos estão agora
junto a nós...
O medico olhou-o admirado:
-
Não crês no Criador? Não ficastes doente! Também não o fiquei! Tenha
fé; precisas te-la! Agora tu és o lorde, o dono desta propriedade, o senhor
destes servos. Confiam em ti! Acompanharam-te no sepultamento de teu pai, ainda
que temessem os ventos...faz-te forte Lorde Arthur! Precisas sê-lo!
Então novamente o medico aproximou-se da janela para
ver a tempestade, o vento rodava fazendo um enorme funil, que tragava tudo por
onde passava. Não tardou a que o abrigo tão arduamente construído sumisse em
seu interior. O medico orava para que aquele vento medonho não passasse em cima
do castelo, os animais no pátio seriam carregados com certeza ou arremessados
contra as muralhas.
O tempo passou, mas a constância da tempestade
continuava ameaçador. Trovões assustadores estremeciam as muralhas enquanto
inúmeros relâmpagos clareavam a escuridão. Pelo horário o sol já deveria ir
alto, mas naquela propriedade o breu ainda fazia completa escuridão.
O medico sentiu-se animado. O forte vento que
assobiava se fora, e este com certeza lhes era o mais perigoso.
Lorde Arthur encorajou-se e saiu a ver como estavam
os servos. Os encontrou em todos os cantos do castelo, em silencio e recolhidos
numa prece intima.
Foi até á cozinha do castelo e pediu que se fizesse
refeição em abundância para todos.
O dia se mantinha-se em plena escuridão. Os fortes ventos haviam
arrastado parte do telheiro, deixando a pequena casa descoberta em grande
maioria e a chuva persistia em cair fortemente. Os ventos uivantes entravam
ameaçadores e os três tentavam proteger-se com as mantas umedecidas. Sentiam
imenso frio !
Podiam escutar o barulho estrondoso do rio que
passava cada vez mais veloz próximo ao lar; assim como os trovões e os
relâmpagos eram igualmente assustadores.
Carol tentava se manter serena mas a aflição lhe era
inevitável. Pouco tinham conseguido dormir;
A tempestade os surpreendera, despertando-os num violento assobio no qual assustadoramente uma parte do
telhado foi facilmente arrancado por um forte golpe de vento. Rapidamente e
ainda sonolentos haviam conseguido arrastar alguns moveis para a parte ainda
coberta da casa e tinham tentado esconder
alguma lenha para que não se molhasse mas fora em vão.
Silvio e Sara estavam próximos a si, silenciosos e
encolhidos, oravam fervorosamente. O desconhecido mantinha-se
impressionantemente inconsciente.
Carol repentinamente lembrou-se do que Sara lhes
dissera: "seriam inúmeras tempestades"...Se aquela menina estivesse
certa, por algum mistério que não conseguia compreender, e se uma tempestade já
havia feito tanto estrago; como suportariam as outras! Temerosa balbuciou
tremula:
-
Sara, serão inúmeras tempestades?
A menina mantinha-se serena encolhida em sua manta ;
porem disse-lhe:
- Sim senhora Carol... amanhã chegarão as
tempestades de nevasca!
A nobre senhora, de cabelo grisalho, desejava não
acreditar no que ouvia; mas sentia que devia faze-lo. Indagou-lhe novamente:
-
Sara, não poderemos ficar aqui! Sabes o que devemos fazer ?
Sara olhou-a desconfiada e perguntou-lhe meigamente:
-
A senhora confia em mim? Acreditará no que lhe digo?
Carol olhou para Silvio e depois olhou para Sara
ternamente. Não sabia o que lhe responder. A menina prosseguiu:
-
A casa não ficará impune á tempestade, o rio a carregará consigo!
Os olhos de Carol faiscavam o imenso temor que
sentia com as suas palavras.
-
Meu pai Job, diz que nos levará a lugar seguro!
Carol rapidamente observou a casa completamente
inundada pela água da chuva, olhou a lenha umedecida; visualizou a grande
abertura no telhado, por onde os fortes ventos entravam
assustadoramente...todos estavam gelados e sentiam fome;
Escutou o rio que mais e mais se aproximava; Pensou
"Sara estava certa, precisavam sair dali, mas para onde?" Olhou a
menina suplicante e esta falou-lhes confiante.
-
Poderão confiar em meu pai Job!
Carol e Silvio não hesitariam em seguir os seus
conselhos misteriosos; sentiam confiança naquela menina meiga, e de olhar puro.
Estavam certos de que ela seria incapaz de brincar, num momento terrível como
aquele que viviam, ainda que não acreditassem na presença de seu pai ali .
Carol pensou preocupada: "Mas como transportar
o desconhecido?". Sara parecendo adivinhar-lhe o pensamento, respondeu
prontamente:
- Deixem-no; não merece viver!
A senhora olhou-a perplexa e não se contendo
indagou-lhe indignada.
- Porque dizes isto Sara, o conheces?
A menina então encolheu os ombros, e com o semblante
enternecido por haver sido repreendida, aproximou-se de Carol dizendo-lhe:
-
Não senhora Carol... mas a senhora o conhece !
Carol olhou o desconhecido analisando-o
minuciosamente e depois de alguns instantes disse convicta.
-
Não o conheço este homem ! Nunca
o vi!
Sara então abraçou-a fortemente sussurrando-lhe :
-
É o filho que gerastes Carol...é
teu filho Gabriel!
Carol novamente sentou-se completamente atordoada
pela emoção. Somente o velho Manco e a nobre Joane sabiam disto!
O pranto desceu quente aquecendo-lhe a face
fria. Sara abraçando-a ainda também comoveu-se em voz
tremula:
-
Meu pai Job, não deseja deixa-la triste; mas é o seu filho Gabriel que aqui está. Meu pai
deseja contar-lhe uma pequena estória da sua vida.
Então Sara narrou a vida de Gabriel pausada e
resumidamente, em todos os males que fizera. Carol estava completamente abalada
com a narração da estória daquele desconhecido, que uma menina
inexplicavelmente ciente de seu passado, dizia ser o seu filho. Sendo ainda
abraçada por Sara, vinha-lhe uma sensação agradável e indescritível de paz que
a reconfortava e a sua imensa dor lhe era de alguma forma amenizada.
Balbuciou ainda em pranto triste, sentindo-se
imensamente confusa com tudo o que ali acontecia.
-
Porque diz teu pai Job, que ele não merece viver?
Sara silenciou demoradamente e respondeu-lhe:
-
Diz que ele fez imenso mal a
todos senhora Carol.
Carol olhou-a afetuosamente, afagando-lhe os cabelos
enquanto as lagrimas ainda lhe rolavam nas faces. Balbuciou tremula olhando ao
redor, como se desejasse ver e dialogar
diretamente com quem auxiliava Sara em tudo o que ela lhe dizia.
-
Se Deus, que é Nosso Pai, ainda não o julgou e condenou; Se apesar
de todas as suas imperfeições e erros o mantém vivo e apto, concedendo-lhe
contínuos amanheceres; porque deverei eu
julga-lo e condena-lo ?
Sara respondeu-lhe, secando-lhe as lagrimas com suas
maozinhas.
-
O meu pai teme que ele nos faça
mal; só está aqui para nos proteger!
Carol lembrando-se do arco , das flechas e dos
facões, disse novamente como se falasse com alguém que estava ali e que não
podia perceber:
-
Não terá como nos fazer mal!
Silvio estava imensamente atônito com tudo o que ali
acontecia. Ambas dialogavam com alguém que não mais existia; Sara contara-lhe, que seu pai Job havia
morrido. Mantinha-se perplexo e silencioso sem compreender corretamente o que
estava acontecendo ali; Recordava-se do
servo Gabriel e uma das partes da estória que Sara ali narrara, ele conhecia;
mas nada falou.
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